quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
Alotropia
"Parar o tempo,
manejá-lo,
substância dócil,
reversível.
Alotropia verbal
sem duração,
pura escolha
da memória."
João José Cochofel
manejá-lo,
substância dócil,
reversível.
Alotropia verbal
sem duração,
pura escolha
da memória."
João José Cochofel
Viver Sempre Também Cansa
"Viver sempre também cansa.
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação."
José Gomes Ferreira
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação."
José Gomes Ferreira
O Poeta
"Triste, lá vai à ronda dos segredos
O maluco que rouba quanto vê.
Branco, do coração aos dedos,
É todo antenas onde apenas lê.
Murcha-lhe nos pés o rosmaninho
E a própria rosa, de o sentir, descora;
Mas é um Deus que passeia o seu caminho
A beber a amargura de quem chora.
Magro, lá passa, e lá se vai consigo
A luz das coisas e a flor de tudo.
É um bruxo lento, tenebroso e antigo,
Pálido, sério, solitário e mudo."
Miguel Torga
O maluco que rouba quanto vê.
Branco, do coração aos dedos,
É todo antenas onde apenas lê.
Murcha-lhe nos pés o rosmaninho
E a própria rosa, de o sentir, descora;
Mas é um Deus que passeia o seu caminho
A beber a amargura de quem chora.
Magro, lá passa, e lá se vai consigo
A luz das coisas e a flor de tudo.
É um bruxo lento, tenebroso e antigo,
Pálido, sério, solitário e mudo."
Miguel Torga
Esta Velha Angústia
"Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!"
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!"
Álvaro de Campos
Trauteando Nazim
"Tenho ruídos na nuca, doutor.
Sinto o crânio apertar e ranger,
sobretudo se há lamúrias. Não sei...
Já há sete anos, doutor,
que em vez de pensamento tenho um ruído
e uma massa tristíssima na cabeça
Farei o que me disser; terei
paciência e confiança. Pode ser.
Tomarei os remédios
para poder pensar nos meus amigos.
Mas se o que acontece, doutor,
é que tenho algum mal que se produz
a expensas do amor
e do pensamento de resistência,
então deixai.o; ele não é
mais que o nosso som natural.
Viverei
melhor com esse ruído na cabeça."
António Gamoneda
Sinto o crânio apertar e ranger,
sobretudo se há lamúrias. Não sei...
Já há sete anos, doutor,
que em vez de pensamento tenho um ruído
e uma massa tristíssima na cabeça
Farei o que me disser; terei
paciência e confiança. Pode ser.
Tomarei os remédios
para poder pensar nos meus amigos.
Mas se o que acontece, doutor,
é que tenho algum mal que se produz
a expensas do amor
e do pensamento de resistência,
então deixai.o; ele não é
mais que o nosso som natural.
Viverei
melhor com esse ruído na cabeça."
António Gamoneda
Esperas
"Uma cidade ao fundo aguarda um vento.
Nela passas. Quem vê engana-se,
quem não olha conhece.
Olhar muito foi luz: cegos teus olhos.
Cala-te. A sombra avança. É a cidade que dorme ainda em mais sono.
Pó nocturno e olhos,
olhos nessa névoa escura. Em cima, a noite.
Cala-te. A solidão deitada também dorme.
Sozinho, nu,
esperas."
Vicente Aleixandre (trad. José Bento)
Nela passas. Quem vê engana-se,
quem não olha conhece.
Olhar muito foi luz: cegos teus olhos.
Cala-te. A sombra avança. É a cidade que dorme ainda em mais sono.
Pó nocturno e olhos,
olhos nessa névoa escura. Em cima, a noite.
Cala-te. A solidão deitada também dorme.
Sozinho, nu,
esperas."
Vicente Aleixandre (trad. José Bento)
Aprende-se
"Depois de algum tempo,
aprende-se a subtil diferença
entre tomar uma mão
e aprisionar uma alma,
e aprende-se
que o amor não significa deitar-se
e uma companhia não significa segurança
e começamos a aprender…
Que os beijos não são contratos
e os presentes não são promessas
e começamos a aceitar as nossas derrotas
de cabeça erguida e de olhos abertos
e aprendemos a construir
os nossos caminhos no hoje,
porque o terreno do amanhã
é demasiado inseguro para planos…
e os futuros ficam-se pela metade.
E depois de algum tempo
aprende-se que se for de mais
até o calorzito do sol queima.
Daí que plantemos o nosso próprio jardim
e decoremos a própria alma,
em vez de esperar que alguém nos traga flores.
E aprendemos que realmente podemos aguentar,
que realmente somos fortes,
que valemos realmente,
e aprendemos, aprendemos…
e com cada dia aprendemos."
Jorge Luís Borges
aprende-se a subtil diferença
entre tomar uma mão
e aprisionar uma alma,
e aprende-se
que o amor não significa deitar-se
e uma companhia não significa segurança
e começamos a aprender…
Que os beijos não são contratos
e os presentes não são promessas
e começamos a aceitar as nossas derrotas
de cabeça erguida e de olhos abertos
e aprendemos a construir
os nossos caminhos no hoje,
porque o terreno do amanhã
é demasiado inseguro para planos…
e os futuros ficam-se pela metade.
E depois de algum tempo
aprende-se que se for de mais
até o calorzito do sol queima.
Daí que plantemos o nosso próprio jardim
e decoremos a própria alma,
em vez de esperar que alguém nos traga flores.
E aprendemos que realmente podemos aguentar,
que realmente somos fortes,
que valemos realmente,
e aprendemos, aprendemos…
e com cada dia aprendemos."
Jorge Luís Borges
Elegia
"Ouvi dizer que não se dava com ninguém,
nos últimos tempos; subia sozinho a rua, até ao café,
e nada lhe desviava o olhar de uma atenção fixa
em algures, ou num pensamento que guardou para
si próprio. A vida é sempre uma realidade frágil
para quem se apercebe do outono e os primeiros ventos
do norte, que trazem consigo os céus limpos e as nuvens frias,
arrefecem a alma que não ganhou o hábito da solidão. “A poesia,
respondo-lhe, não dá resposta a esse último desconforto
do ser.” Ele não me ouve, agora que o seu próprio nome
se apaga na monotonia das tardes e das lentas estações. Só
uma ave antiga cruza, por vezes, o céu de esquecimento
em que a sua sombra dorme; deixando um sulco de asas,
como um verso, acordar por instantes a sua imagem."
Nuno Júdice
nos últimos tempos; subia sozinho a rua, até ao café,
e nada lhe desviava o olhar de uma atenção fixa
em algures, ou num pensamento que guardou para
si próprio. A vida é sempre uma realidade frágil
para quem se apercebe do outono e os primeiros ventos
do norte, que trazem consigo os céus limpos e as nuvens frias,
arrefecem a alma que não ganhou o hábito da solidão. “A poesia,
respondo-lhe, não dá resposta a esse último desconforto
do ser.” Ele não me ouve, agora que o seu próprio nome
se apaga na monotonia das tardes e das lentas estações. Só
uma ave antiga cruza, por vezes, o céu de esquecimento
em que a sua sombra dorme; deixando um sulco de asas,
como um verso, acordar por instantes a sua imagem."
Nuno Júdice
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Apelo
"Porque
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência.
Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o limite dos mortais."
Miguel Torga
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência.
Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o limite dos mortais."
Miguel Torga
Caminho
"Era um caminho que de tão velho, minha filha,
já nem mais sabia aonde ia…
Era um caminho
velhinho,
perdido…
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho…
Eu vi…
Porque são os passos que fazem os caminhos!"
Mario Quintana
já nem mais sabia aonde ia…
Era um caminho
velhinho,
perdido…
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho…
Eu vi…
Porque são os passos que fazem os caminhos!"
Mario Quintana
A Casa Térrea
"Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre.
Então construirás a tua casa na planície costeira
A meia distância entre montanha e mar
Construirás - como se diz - a casa térrea -
Construirás a partir do fundamento."
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre.
Então construirás a tua casa na planície costeira
A meia distância entre montanha e mar
Construirás - como se diz - a casa térrea -
Construirás a partir do fundamento."
Sophia de Mello Breyner Andresen
O Tempo Que Não se Perdeu
"Não se contam as ilusões
nem as compreensões amargas,
não há medida para contar
o que não podia acontecer-nos,
o que nos rondou como besouro
sem que tivéssemos percebido
do que estávamos perdendo.
Perder até perder a vida
é viver a vida e a morte
não são coisas passageiras
mas sim constantes, evidentes,
a continuidade do vazio,
o silêncio em que cai tudo
e por fim nós mesmos caímos.
Ai! o que esteve tão cerca
sem que pudéssemos saber.
Ai! o que não podia ser
quando talvez podia ser.
Tantas asas circunvoaram
as montanhas da tristeza
e tantas rodas sacudiram
a estrada do destino
que já não há nada a perder.
Terminaram-se os lamentos."
nem as compreensões amargas,
não há medida para contar
o que não podia acontecer-nos,
o que nos rondou como besouro
sem que tivéssemos percebido
do que estávamos perdendo.
Perder até perder a vida
é viver a vida e a morte
não são coisas passageiras
mas sim constantes, evidentes,
a continuidade do vazio,
o silêncio em que cai tudo
e por fim nós mesmos caímos.
Ai! o que esteve tão cerca
sem que pudéssemos saber.
Ai! o que não podia ser
quando talvez podia ser.
Tantas asas circunvoaram
as montanhas da tristeza
e tantas rodas sacudiram
a estrada do destino
que já não há nada a perder.
Terminaram-se os lamentos."
Pablo Neruda
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
Não Desafies a Alegria
"Não desafies
a alegria.
Quando ela chegue
um instante só
não lhe perguntes
porquê?
Estende as mãos ávidas
para o calor
da cinza fria."
João José Cochofel
a alegria.
Quando ela chegue
um instante só
não lhe perguntes
porquê?
Estende as mãos ávidas
para o calor
da cinza fria."
João José Cochofel
Biografia
"Sonho, mas não parece.
Nem quero que pareça.
É por dentro que eu gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.
Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.
Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa.
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela, prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira
Numa agressiva fúria se liberta."
Miguel Torga
Nem quero que pareça.
É por dentro que eu gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.
Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.
Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa.
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela, prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira
Numa agressiva fúria se liberta."
Miguel Torga
domingo, 28 de dezembro de 2014
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
(O soneto que só errado ficou certo)
"Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva"
José Gomes Ferreira
"Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva"
Vadiar a Horas Mortas
"É na noite acolhedora
cheia de aromas dispersos
que me sinto mais abandonado,
mais só.
E a noite recebe-me,
acalenta-me.
Quase me sinto feliz da minha solidão.
Noite,
chave da consolação
e da compreensão de tudo.
Vadiar
a horas mortas
nas ruas solitárias
de iluminação fraca.
Ouvir esquecido
o bater das horas na torre
ao longe.
Tempo que passa e que esqueço."
João José Cochofel
cheia de aromas dispersos
que me sinto mais abandonado,
mais só.
E a noite recebe-me,
acalenta-me.
Quase me sinto feliz da minha solidão.
Noite,
chave da consolação
e da compreensão de tudo.
Vadiar
a horas mortas
nas ruas solitárias
de iluminação fraca.
Ouvir esquecido
o bater das horas na torre
ao longe.
Tempo que passa e que esqueço."
João José Cochofel
Dói-me quem sou
"Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento.
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.
Numa amargura artificial consisto
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.
Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou."
Fernando Pessoa
Ergue a fronte de torre um pensamento.
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.
Numa amargura artificial consisto
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.
Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou."
Fernando Pessoa
Poemas de Desilusão e Revolta
"Outra vez este desapego de tudo.
Outra vez
este olhar indiferente para tudo:
não encontrar na vida uma razão de viver.
Triste
encosto-me na janela
e olho a natureza livre.
Talvez valesse a pena ser árvore...
Talvez valesse a pena ser cão.
Tudo
menos andar amarrado uma vida inteira
aos preconceitos inúteis
duma civilização caduca."
João José Cochofel
Outra vez
este olhar indiferente para tudo:
não encontrar na vida uma razão de viver.
Triste
encosto-me na janela
e olho a natureza livre.
Talvez valesse a pena ser árvore...
Talvez valesse a pena ser cão.
Tudo
menos andar amarrado uma vida inteira
aos preconceitos inúteis
duma civilização caduca."
João José Cochofel
sábado, 27 de dezembro de 2014
Transfiguração
"Tens agora
outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...
Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes..."
outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...
Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes..."
Miguel Torga
Um Cálido Rumor
"Um cálido rumor.
Um fremir de asas
chama na noite
quase antemanhã.
Sobressaltando o sono dos corações,
vem de mansinho segredar
à janela das casas.
É apenas um murmúrio,
um silêncio pulsando,
o assombro incerto das revelações.
Pousada num pinheiro,
a luz escuta
a voz dos bichos, das árvores, das estrelas,
que por nós chama insistentemente.
A própria voz da noite, sincopada e fluorescente.
Que ininteligível esperança
os seus lábios castos pronunciam?"
João José Cochofel
Um fremir de asas
chama na noite
quase antemanhã.
Sobressaltando o sono dos corações,
vem de mansinho segredar
à janela das casas.
É apenas um murmúrio,
um silêncio pulsando,
o assombro incerto das revelações.
Pousada num pinheiro,
a luz escuta
a voz dos bichos, das árvores, das estrelas,
que por nós chama insistentemente.
A própria voz da noite, sincopada e fluorescente.
Que ininteligível esperança
os seus lábios castos pronunciam?"
João José Cochofel
Um Dia, a Solidão
...
"Um dia, a solidão
- que dor de vergonha! -
levou-me pela mão
para seu baluarte
e disse-me " sonha!
O sonho é a tua lei"
E eu para ali fiquei,
Tão farto de ser eu,
A ouvir o meu coração
Bater em toda a parte,
Nos astros do chão,
Nas pedras do céu.
E eu para ali fiquei
A arrancar a carne das unhas,
Sozinho no meu jardim,
A viver sem testemunhas
No espelho de mim.
E eu para ali fiquei
Com o mundo a obedecer aos meus caprichos:
A luz, as flores, os bichos
E o sol enforcado na floresta,
Na alucinação
Duma corda de lava
A baloiçar ao vento da minhaalma à solta…
E eu para ali fiquei
- pobre de mim que ignorava
a dor da verdadeira solidão
que é esta! Que é esta!…
Muita gente à minha volta
E eu aos tombos pelas ruas,
longe de todos e de mim,
a morrer pelos outros
em barricadas de estrelas e de luas."
"Um dia, a solidão
- que dor de vergonha! -
levou-me pela mão
para seu baluarte
e disse-me " sonha!
O sonho é a tua lei"
E eu para ali fiquei,
Tão farto de ser eu,
A ouvir o meu coração
Bater em toda a parte,
Nos astros do chão,
Nas pedras do céu.
E eu para ali fiquei
A arrancar a carne das unhas,
Sozinho no meu jardim,
A viver sem testemunhas
No espelho de mim.
E eu para ali fiquei
Com o mundo a obedecer aos meus caprichos:
A luz, as flores, os bichos
E o sol enforcado na floresta,
Na alucinação
Duma corda de lava
A baloiçar ao vento da minhaalma à solta…
E eu para ali fiquei
- pobre de mim que ignorava
a dor da verdadeira solidão
que é esta! Que é esta!…
Muita gente à minha volta
E eu aos tombos pelas ruas,
longe de todos e de mim,
a morrer pelos outros
em barricadas de estrelas e de luas."
José Gomes Ferreira
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
Estou cansado
"Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo…
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto me dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa."
Fernando Pessoa
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo…
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto me dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa."
Fernando Pessoa
Preparação para a morte
"A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."
Manuel Bandeira
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."
Manuel Bandeira
O Dia Inacabado
"Como todos os homens, sou inacabado.
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia.
Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que me somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobra é o meu contentamento."
Lêdo Ivo
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia.
Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que me somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobra é o meu contentamento."
Lêdo Ivo
Natal
"Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
Jorge de Sena
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
Jorge de Sena
Lamentação
"Os outros
foram-se embora.
Eu fiquei só
e deixaram-me.
Deixara-me
e não voltaram.
Deixaram-me
e fiquei só.
Fiquei só com esta angústia
que me deixaram..."
João José Cochofel
foram-se embora.
Eu fiquei só
e deixaram-me.
Deixara-me
e não voltaram.
Deixaram-me
e fiquei só.
Fiquei só com esta angústia
que me deixaram..."
João José Cochofel
Quando ainda sou a vida
"Cerca-me a vida, como naqueles anos
já perdidos, com o mesmo esplendor
de um mundo eterno. A rosa esfaqueada
do mar, as luzes derrubadas
dos hortos, o fragor das pombas
no ar, a vida ao meu redor,
quando ainda sou a vida.
Com o mesmo esplendor, e olhos envelhecidos,
e um amor fatigado.
Qual será a esperança? Viver mais,
e amar, enquanto se esgota o coração.
um mundo fiel embora perecível.
Amar o sonho destruído da vida
e, embora não possa ser, não maldizer
aquele antigo engano do eterno.
E consola-se o peito, porque sabe
que o mundo pode ser uma bela verdade."
Francisco Brines (trad José Bento)
já perdidos, com o mesmo esplendor
de um mundo eterno. A rosa esfaqueada
do mar, as luzes derrubadas
dos hortos, o fragor das pombas
no ar, a vida ao meu redor,
quando ainda sou a vida.
Com o mesmo esplendor, e olhos envelhecidos,
e um amor fatigado.
Qual será a esperança? Viver mais,
e amar, enquanto se esgota o coração.
um mundo fiel embora perecível.
Amar o sonho destruído da vida
e, embora não possa ser, não maldizer
aquele antigo engano do eterno.
E consola-se o peito, porque sabe
que o mundo pode ser uma bela verdade."
Francisco Brines (trad José Bento)
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
Guerra Civil
"É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso,
O que sinto,
O que digo
E o que faço,
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço.
Absurda aliança
De criança
E adulto,
O que sou é um insulto
Ao que não sou;
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou.
Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
Nem convencido.
E agrido em mim o homem e o menino."
Miguel Torga
Não tenho outro inimigo.
O que penso,
O que sinto,
O que digo
E o que faço,
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço.
Absurda aliança
De criança
E adulto,
O que sou é um insulto
Ao que não sou;
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou.
Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
Nem convencido.
E agrido em mim o homem e o menino."
Miguel Torga
Ouve, tu que não existes em nenhum céu
"Ouve, tu que não existes em nenhum céu:
Estou farto de escavar nos olhos
abismos de ternura
onde cabem todos menos eu.
Estou farto de palavras de perdão
que me ferem a boca
dum frio de lágrimas quentes de punhal.
Estou farto desta dor inútil
de chorar por mim nos outros.
- Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever
os versos que me fazem doer."
José Gomes Ferreira
Estou farto de escavar nos olhos
abismos de ternura
onde cabem todos menos eu.
Estou farto de palavras de perdão
que me ferem a boca
dum frio de lágrimas quentes de punhal.
Estou farto desta dor inútil
de chorar por mim nos outros.
- Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever
os versos que me fazem doer."
José Gomes Ferreira
Ânsia que só tem
"Ânsia que só tem
o limite do sonho.
De tudo me vem
a dor que nela ponho.
Uma dor de esperança
que teima em romper
deste chão de raiva
que nos dão pra viver.
Mas que queremos arar
de flores e de frutos.
Oculte a seara
o campo de lutos."
João José Cochofel
o limite do sonho.
De tudo me vem
a dor que nela ponho.
Uma dor de esperança
que teima em romper
deste chão de raiva
que nos dão pra viver.
Mas que queremos arar
de flores e de frutos.
Oculte a seara
o campo de lutos."
João José Cochofel
Heróicas
XXXVI
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.
Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera,
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.
Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.
Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido…
(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)
Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
com a minha sede."
José Gomes Ferreira
Felicidade
"A felicidade sentava-se todos os dias
no peitoril da janela.
Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas
faces humanas.
E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu
próprio nome."
Jorge de Sena
no peitoril da janela.
Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas
faces humanas.
E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu
próprio nome."
Jorge de Sena
Equinócio
"Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato
Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena
Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo
Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe"
David Mourão-Ferreira
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato
Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena
Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo
Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe"
David Mourão-Ferreira
domingo, 21 de dezembro de 2014
Poemas de Desilusão e de Revolta
IV
"Isto
de ser o que se não é,
de andar sempre a mentir
(quantas vezes a nós próprios!)
tiranizados,
forçados,
chegando mesmo a esquecer
por vezes,
que somos bois debaixo de uma canga:
Isto,
juro-vos,
ainda há-de acabar."
João José Cochofel
"Isto
de ser o que se não é,
de andar sempre a mentir
(quantas vezes a nós próprios!)
tiranizados,
forçados,
chegando mesmo a esquecer
por vezes,
que somos bois debaixo de uma canga:
Isto,
juro-vos,
ainda há-de acabar."
João José Cochofel
Cantar
"Tão longo caminho
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto Passo andado
País ocupado
Num quarto fechado
As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados
Naquela cidade
Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera
Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens"
Sophia de Mello Breyner Andresen
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto Passo andado
País ocupado
Num quarto fechado
As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados
Naquela cidade
Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera
Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens"
Pedras Antárticas
"Ali termina tudo
e não termina:
ali começa tudo
se despedem os rios no gelo,
o ar se há casado com a neve,
não há ruas nem cavalos
e o único edifício
o construiu a pedra.
Ninguém habita o castelo
nem as almas perdidas
que frio e vento frio
amedrontaram:
é sozinha ali a solidão do mundo,
e por isso a pedra
se fez música,
elevou suas delgadas estaturas,
se levantou para gritar ou cantar,
porém ficou muda.
Só o vento,
o açoite
do Pólo Sul que assobia,
só o vazio branco
e um som de pássaro de chuva
sobre o castelo da solidão."
Pablo Neruda
e não termina:
ali começa tudo
se despedem os rios no gelo,
o ar se há casado com a neve,
não há ruas nem cavalos
e o único edifício
o construiu a pedra.
Ninguém habita o castelo
nem as almas perdidas
que frio e vento frio
amedrontaram:
é sozinha ali a solidão do mundo,
e por isso a pedra
se fez música,
elevou suas delgadas estaturas,
se levantou para gritar ou cantar,
porém ficou muda.
Só o vento,
o açoite
do Pólo Sul que assobia,
só o vazio branco
e um som de pássaro de chuva
sobre o castelo da solidão."
Pablo Neruda
Fruto de sol na minha boca
"Fruto de sol na minha boca.
-- Terra tão vasta
e a vida tão pouca!
De Inverno e de Verão faça sol de Agosto.
-- Fruto na boca
deixou o seu gosto.
Assim deito meus olhos à flor do mundo.
Nem me peçam mais:
os lagos serenos têem menos fundo."
João José Cochofel
-- Terra tão vasta
e a vida tão pouca!
De Inverno e de Verão faça sol de Agosto.
-- Fruto na boca
deixou o seu gosto.
Assim deito meus olhos à flor do mundo.
Nem me peçam mais:
os lagos serenos têem menos fundo."
João José Cochofel
Riqueza
"Por parques e praças,
Ruas e travessas,
Tu, meu olhar, caças
A vida. E tropeças.
Uma gargalhada
Vem dum par contente.
Guarda-a bem guardada,
Mas caminha em frente.
Surgem-te sorrisos
Dum e de outro lado.
Não faças juízos
Rápidos. Cuidado!
Uma face grave
Nada te revela?
Talvez a dor cave,
Só mais tarde, nela.
Num choro, num grito,
Pressentes a dor?
E quedas, aflito.
Seque, por favor!
Segue, bem aberto
Para cada canto!
Olha o desconcerto
Que parece tanto!
Corre, olhar, em roda!
O que me intimida?
A vida? Só toda
Pode amar-se, a vida."
Alberto de Serpa
Ruas e travessas,
Tu, meu olhar, caças
A vida. E tropeças.
Uma gargalhada
Vem dum par contente.
Guarda-a bem guardada,
Mas caminha em frente.
Surgem-te sorrisos
Dum e de outro lado.
Não faças juízos
Rápidos. Cuidado!
Uma face grave
Nada te revela?
Talvez a dor cave,
Só mais tarde, nela.
Num choro, num grito,
Pressentes a dor?
E quedas, aflito.
Seque, por favor!
Segue, bem aberto
Para cada canto!
Olha o desconcerto
Que parece tanto!
Corre, olhar, em roda!
O que me intimida?
A vida? Só toda
Pode amar-se, a vida."
Alberto de Serpa
sábado, 20 de dezembro de 2014
Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos
"Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se-me com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro."
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se-me com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro."
Álvaro de Campos
Protesto
"Desespero da vida, crime turvo
Como o de água de rio que não corre;
Traição de bicho, arrependido e curvo
Dentro da concha onde se abisma e morre.
Cegueira negra no areal batido
Por altas e divinas claridades;
Pinheiro seco no pinhal, erguido
Como fantasma vil doutras idades.
Desespero da vida! Cobardia
Do tripulante duma embarcação
Que leva sonho, céu e maresia
Nas velas, no convés e no porão!"
Miguel Torga
Como o de água de rio que não corre;
Traição de bicho, arrependido e curvo
Dentro da concha onde se abisma e morre.
Cegueira negra no areal batido
Por altas e divinas claridades;
Pinheiro seco no pinhal, erguido
Como fantasma vil doutras idades.
Desespero da vida! Cobardia
Do tripulante duma embarcação
Que leva sonho, céu e maresia
Nas velas, no convés e no porão!"
Miguel Torga
Indícios de Primavera
"Como exprimir
esta incerteza,
esta ansiedade,
esta tristeza vaga, indefinida,
a que nem sequer conheço bem as causas?!...
Ouvem-se galos ao longe
e a brisa mal se sente
na atmosfera parada.
O sol declinando doura tudo,
e a tarde vai descendo
calma e deliciosa....
À minha volta tudo é silêncio,
apenas cortado pelo latir dos cães,
e o cantar dos galos longínquos
e o barulho do comboio que passa ao fundo.
Tudo é calmo e sereno...
até mesmo o meu desespêro
que me põe lágrimas nos olhos..."
João José Cochofel
esta incerteza,
esta ansiedade,
esta tristeza vaga, indefinida,
a que nem sequer conheço bem as causas?!...
Ouvem-se galos ao longe
e a brisa mal se sente
na atmosfera parada.
O sol declinando doura tudo,
e a tarde vai descendo
calma e deliciosa....
À minha volta tudo é silêncio,
apenas cortado pelo latir dos cães,
e o cantar dos galos longínquos
e o barulho do comboio que passa ao fundo.
Tudo é calmo e sereno...
até mesmo o meu desespêro
que me põe lágrimas nos olhos..."
João José Cochofel
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
Princípio
"Não tenho deuses. Vivo
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tacteiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vide na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma."
Miguel Torga
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tacteiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vide na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma."
Miguel Torga
Os Abandonados pela morte
"Um com um punho apoiado na cara,
o outro com a cabeça afundada nas mãos
e o terceiro com os olhos abertos para o vazio
os três velhos dormitam ao redor da mesa, na esplanada de um bar.
Depois do café, acalorados, esperam a desconhecida
que nos sonhos os visita, pacientes ou impacientes,
e acaricia as máscaras dos seus rostos,
que o suor desenha e apaga.
De súbito, o ruído de uma moto
e um par jovem e enlaçado atravessa a estrada,
depois o estrondo, os previsíveis sinais da morte
que procura a juventude e não os corpos decrépitos.
Os três velhos olham-se e choram o seu abandono."
Juan Luis Panero (Trad de Joaquim Manuel Magalhães)
o outro com a cabeça afundada nas mãos
e o terceiro com os olhos abertos para o vazio
os três velhos dormitam ao redor da mesa, na esplanada de um bar.
Depois do café, acalorados, esperam a desconhecida
que nos sonhos os visita, pacientes ou impacientes,
e acaricia as máscaras dos seus rostos,
que o suor desenha e apaga.
De súbito, o ruído de uma moto
e um par jovem e enlaçado atravessa a estrada,
depois o estrondo, os previsíveis sinais da morte
que procura a juventude e não os corpos decrépitos.
Os três velhos olham-se e choram o seu abandono."
Juan Luis Panero (Trad de Joaquim Manuel Magalhães)
Madrugada
"Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
Ainda
estou vivo
No centro
de uma ferida ainda fresca."
Octavio Paz
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
Ainda
estou vivo
No centro
de uma ferida ainda fresca."
Octavio Paz
E só agora penso
"E só agora penso:
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim
mesmo?
para não ver quão pouca luz tenho dentro?
ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso.
agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?
─ cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados pelo
fundo e amargo espelho velho:
e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente
o mesmo."
Herberto Helder
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim
mesmo?
para não ver quão pouca luz tenho dentro?
ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso.
agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?
─ cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados pelo
fundo e amargo espelho velho:
e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente
o mesmo."
Herberto Helder
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Bairro Novo
"Na doçura do cair da tarde
vou passando
através das ruas do bairro novo.
Este bairro
é quase desconhecido para mim.
Chego a ter a ilusão
de que habito uma cidade diferente.
O sol bate nas vidraças.
Tudo respira uma alegria suave.
Nas janelas
há meninas debruçadas.
Estão na «idade perigosa»
e sonham.
É tão perigoso sonhar…
Fumo e distraio-me,
uma grande doçura a invadir-me.
Era tão bela a vida
se todos quisessem…"
João José Cochofel
vou passando
através das ruas do bairro novo.
Este bairro
é quase desconhecido para mim.
Chego a ter a ilusão
de que habito uma cidade diferente.
O sol bate nas vidraças.
Tudo respira uma alegria suave.
Nas janelas
há meninas debruçadas.
Estão na «idade perigosa»
e sonham.
É tão perigoso sonhar…
Fumo e distraio-me,
uma grande doçura a invadir-me.
Era tão bela a vida
se todos quisessem…"
João José Cochofel
Desencontro
"Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.
E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,
de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra."
Jorge de Sena
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.
E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,
de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra."
Jorge de Sena
É tudo tão pequeno esta manhã
"É tudo tão pequeno esta manhã.
As aves acordaram surpreendidas,
a voarem nos meus olhos
curvas fatigadas
de Primavera morta…
As mãos caem-me secas
ao longo do corpo
em folhas recortadas
de árvore de solidão…
As raízes sugam-me nas veias
o sangue da terra
das manhãs de sussurro…
Sim. Hoje só eu existo…
Eu com este remorso de gota de água
que se recusa a cair no mar
─ para se sentir maior
longe da cólera comum da Tempestade."
José Gomes Ferreira
As aves acordaram surpreendidas,
a voarem nos meus olhos
curvas fatigadas
de Primavera morta…
As mãos caem-me secas
ao longo do corpo
em folhas recortadas
de árvore de solidão…
As raízes sugam-me nas veias
o sangue da terra
das manhãs de sussurro…
Sim. Hoje só eu existo…
Eu com este remorso de gota de água
que se recusa a cair no mar
─ para se sentir maior
longe da cólera comum da Tempestade."
José Gomes Ferreira
É assim
"É assim:
a gente despede-se, vai-se
embora amaldiçoando a terra,
carrega amargura que nem o diabo
aguenta; com o tempo vai
esquecendo injustiças, mágoas,
injúrias, morrendo por regressar
ao cheiro da palha seca, ao calor
animal do estábulo
ao sonho do quintalório
com três alqueires de milho ao sol
e dois pinheiros bravos-
porque não há no mundo
outro lugar onde
enfim dê tanto gosto chafurdar."
Eugénio de Andrade
a gente despede-se, vai-se
embora amaldiçoando a terra,
carrega amargura que nem o diabo
aguenta; com o tempo vai
esquecendo injustiças, mágoas,
injúrias, morrendo por regressar
ao cheiro da palha seca, ao calor
animal do estábulo
ao sonho do quintalório
com três alqueires de milho ao sol
e dois pinheiros bravos-
porque não há no mundo
outro lugar onde
enfim dê tanto gosto chafurdar."
Eugénio de Andrade
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Quando ficas sozinho
"Quando ficas sozinho, és espelho
do que foste:
uma manhã
contemplada da janela encostada
da varanda; alguns passos
harmoniosos que não seguiste
para não derramar teu gozo;
umas quantas palavras
que te modificaram mais que o tempo;
um olhar que se afogou
como luz em tuas veias;
uma viagem que não querias
terminar nunca; tua alma ausente
do que te esperava
ao ficares tão sozinho."
Ángel Crespo (trad, José Bento)
do que foste:
uma manhã
contemplada da janela encostada
da varanda; alguns passos
harmoniosos que não seguiste
para não derramar teu gozo;
umas quantas palavras
que te modificaram mais que o tempo;
um olhar que se afogou
como luz em tuas veias;
uma viagem que não querias
terminar nunca; tua alma ausente
do que te esperava
ao ficares tão sozinho."
Ángel Crespo (trad, José Bento)
Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa
"Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa
Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço!
Mas não.
Lá está o sol do costume
com a exactidão
duma bola de lume
desenhada a compasso...
...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...
e desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.
Ah! Como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?"
José Gomes Ferreira
Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço!
Mas não.
Lá está o sol do costume
com a exactidão
duma bola de lume
desenhada a compasso...
...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...
e desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.
Ah! Como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?"
José Gomes Ferreira
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
Pórtico
"Outros serão
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
– ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento dos tardes mornas
a calma dos beijos longos.
(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando…)
Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa
que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm…"
João José Cochofel
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
– ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento dos tardes mornas
a calma dos beijos longos.
(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando…)
Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa
que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm…"
João José Cochofel
Comunicado
"Falta um combate ainda, o decisivo.
Ganhei quantos perdi, porque resisto.
Mesmo cansado e mutilado, existo,
Num vitalismo cósmico ostensivo.
Filho da Terra, minha mãe amada,
É ela que levanta o lutador caído.
Anteu anão,
Toco-lhe o coração,
E ergo-me do chão
Fortalecido.
Mas há fúrias hercúleas contra mim:
O tempo, a morte, e o próprio desencanto
De viver...
Pode, porém, ainda acontecer
Que, mesmo nessa hora, a consciência
Negue, de frente, a própria violência
Que me vencer..."
Miguel Torga
Ganhei quantos perdi, porque resisto.
Mesmo cansado e mutilado, existo,
Num vitalismo cósmico ostensivo.
Filho da Terra, minha mãe amada,
É ela que levanta o lutador caído.
Anteu anão,
Toco-lhe o coração,
E ergo-me do chão
Fortalecido.
Mas há fúrias hercúleas contra mim:
O tempo, a morte, e o próprio desencanto
De viver...
Pode, porém, ainda acontecer
Que, mesmo nessa hora, a consciência
Negue, de frente, a própria violência
Que me vencer..."
Miguel Torga
domingo, 14 de dezembro de 2014
A Minha Solidão
(Durante dias andei ruminar estes versos.)
"A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...
...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.
...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.
...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.
...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.
...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.
...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.
...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.
Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...
...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado."
José Gomes Ferreira
"A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...
...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.
...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.
...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.
...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.
...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.
...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.
...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.
Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...
...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado."
José Gomes Ferreira
Raiz de Orvalho
"Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram
Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada
De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens
Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância
Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno"
Mia Couto
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram
Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada
De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens
Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância
Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno"
Mia Couto
Repouso
"Nesta mansidão,
nesta luz transparente,
na calma destes dias,
na suavidade destas tardes,
há um misto de repouso,
melancolia,
e também inquietamento.
Nas coisas adormecidas
há como que promessas
de grandes vidas.
Nestes dias,
em que os cães se deitam ao sol,
mansamente;
em que a roupa a enxugar
não tem uma brisa que a enrugue;
nestes dias,
a natureza dorme
de um sono fecundo.
E a gente fala baixinho
com medo de acordar,
porque nós também dormimos.
Caído de outro mundo
olho em redor.
E esqueço-me de que olho,
esqueço-me do que penso…
Um galo que cantou alto
desfez o mistério."
João José Cochofel
nesta luz transparente,
na calma destes dias,
na suavidade destas tardes,
há um misto de repouso,
melancolia,
e também inquietamento.
Nas coisas adormecidas
há como que promessas
de grandes vidas.
Nestes dias,
em que os cães se deitam ao sol,
mansamente;
em que a roupa a enxugar
não tem uma brisa que a enrugue;
nestes dias,
a natureza dorme
de um sono fecundo.
E a gente fala baixinho
com medo de acordar,
porque nós também dormimos.
Caído de outro mundo
olho em redor.
E esqueço-me de que olho,
esqueço-me do que penso…
Um galo que cantou alto
desfez o mistério."
João José Cochofel
sábado, 13 de dezembro de 2014
Lasso, Triste, Venho
"Lasso, triste, venho
do silêncio em mim.
Que escuro o caminho!
Que longe do fim!
Indeciso ainda
como um cristal baço;
mas que fome existe
já no meu cansaço!
Olho-me por dentro:
que frio, sozinho!
Aqueço-me ao fogo
do comum destino."
João José Cochofel
do silêncio em mim.
Que escuro o caminho!
Que longe do fim!
Indeciso ainda
como um cristal baço;
mas que fome existe
já no meu cansaço!
Olho-me por dentro:
que frio, sozinho!
Aqueço-me ao fogo
do comum destino."
João José Cochofel
O Sol do Mendigo
"Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o sol na algibeira
Quando a noite vem
pendura o sol à beira de um valado
e dorme toda a noite à soalheira…
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!
E só à noite se cala o pobre,
Atira-se para o lado,
dorme, dorme…"
E toda a noite o sol o cobre…
e leva o sol na algibeira
Quando a noite vem
pendura o sol à beira de um valado
e dorme toda a noite à soalheira…
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!
E só à noite se cala o pobre,
Atira-se para o lado,
dorme, dorme…"
E toda a noite o sol o cobre…
Manuel da Fonseca
Terra de ninguém
"Todos têm para mim o desprezo dos fortes,
todos têm para mim
o desprezo
dos que encontram na vida um caminho
- que muitas vezes não encontraram
mas julgaram encontrar.
Caminho
que pode ser o seu
mas é um caminho...
Eu
continuarei a perder-me nos horizontes largos,
a andar às cegas entre o mal e o bem...
que a minha terra
é Terra de Ninguém."
João José Cochofel
todos têm para mim
o desprezo
dos que encontram na vida um caminho
- que muitas vezes não encontraram
mas julgaram encontrar.
Caminho
que pode ser o seu
mas é um caminho...
Eu
continuarei a perder-me nos horizontes largos,
a andar às cegas entre o mal e o bem...
que a minha terra
é Terra de Ninguém."
João José Cochofel
O Teu Riso
"Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.
Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.
Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.
À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.
Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria."
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.
Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.
Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.
À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.
Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria."
Pablo Neruda
A estrela
"Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.
Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?
E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia."
Manuel Bandeira
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.
Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?
E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia."
Manuel Bandeira
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Fantasia
"Há uma mulher em toda a minha vida,
Que não se chega bem a precisar.
Uma mulher que eu trago em mim perdida,
Sem a poder beijar.
Há uma mulher na minha vida inquieta.
Uma mulher? Há duas, muitas mais,
Que não são vagos sonhos de poeta,
Nem formas irreais.
Mulheres que existem, corpos, realidade,
Têm passado por mim, humanamente,
Deixando, quando partem, a saudade
Que deixa toda a gente.
Mas coisa singular, essa que eu não beijei,
É quem me ilude, é quem me prende e quer.
Com ela sonho e sofro... Só não sei
Quem é essa mulher."
Alfredo Brochado
Que não se chega bem a precisar.
Uma mulher que eu trago em mim perdida,
Sem a poder beijar.
Há uma mulher na minha vida inquieta.
Uma mulher? Há duas, muitas mais,
Que não são vagos sonhos de poeta,
Nem formas irreais.
Mulheres que existem, corpos, realidade,
Têm passado por mim, humanamente,
Deixando, quando partem, a saudade
Que deixa toda a gente.
Mas coisa singular, essa que eu não beijei,
É quem me ilude, é quem me prende e quer.
Com ela sonho e sofro... Só não sei
Quem é essa mulher."
Alfredo Brochado
Frustação
"Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais."
Miguel Torga
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais."
Miguel Torga
A Lágrima
7
dos dias longos, gastos, fulgurante
traçando o curso: aí, diante
do vidro se encontra, se retém
sobre a mesa, leve, a dor. De quantos
golpes, e sorrisos, se constrói? In-
dizível parte, e passa, e fin-
da alva, algures - se longe, tantos
olhos a espiam. Que som havia
antes, tal espaço? Palavra ou
tão só a noite? E (ainda) leda
se desdobra, a: sinal, ave, fria
corre, imagem dura que secou
no sulco, vão: a lágrima, a queda."
Diogo Alcoforado
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Sina
"O dia amanheceu feliz,
Queria subir aos montes,
Queria beber nas fontes,
Queria perder-se nos largos horizontes...
Mas a vida não quis."
Miguel Torga
Queria subir aos montes,
Queria beber nas fontes,
Queria perder-se nos largos horizontes...
Mas a vida não quis."
Miguel Torga
Sim, sou eu, eu mesmo
"Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio!..."
Álvaro de Campos
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio!..."
Álvaro de Campos
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
Nomeei-te no meio dos meus sonhos
"Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor"
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor"
Ruy Belo
Café Orfeu
"Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.
Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.
Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.
E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém(eu provavelmente)
nunca tivesse existido."
Manuel António Pina
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.
Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.
Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.
E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém(eu provavelmente)
nunca tivesse existido."
terça-feira, 9 de dezembro de 2014
Se as minhas mãos pudessem desfolhar...
"Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!"
Federico Garcia Lorca
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!"
Federico Garcia Lorca
Ruas da Cidade
"Na noite calada e quieta como um grande segredo,
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.
Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
o frio, e os altos prédios fechados,
e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.
E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
como pálpebras que se vão fechar.
E o torpor saindo de todas as coisas
e pairando no ar, como um desmaio iminente...
Só eu ainda tenho passos para andar
e uma não sei que ternura
para todos que estão, para lá das paredes
adormecidos e descuidados
à morte que espreita escondida no mistério da noite...
Em que casa e andar estará dormindo
aquela de quem não sei o nome nem a vida,
mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo
quando nos cruzamos esta manhã?
Nesse momento,
ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos
das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro — Hoje é um dia de glória!
Mas tão estranho me pareceu aquele milagre entre dois desconhecidos,
que nem voltei a cabeça para trás...
Agora este desânimo sem nome
de quem traiu um dia inteiro de vida
e teima ir pela noite dentro
á espera nem sabe de quê ...
De tantas horas iguais estou farto!
Mas ao fim e sempre a mesma esperança: “um dia virá..."
E eu que tenho a vida desarrumada
como se fosse um milionário bêbado,
ergo-me e saio para a rua deslumbrado
e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.
E vai a coisa tão certa como uma religião,
quanto pressinto que me olham de todas as caras
como se espiassem um louco...
Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?
E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
Ah, um dia, quando a morte chegar,
hei de erguer para ela os meus olhos molhados,
e hei de contar-lhe a indiferença do mundo
e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
— assim como um menino fazendo queixas a sua mãe."
Manuel da Fonseca
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.
Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
o frio, e os altos prédios fechados,
e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.
E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
como pálpebras que se vão fechar.
E o torpor saindo de todas as coisas
e pairando no ar, como um desmaio iminente...
Só eu ainda tenho passos para andar
e uma não sei que ternura
para todos que estão, para lá das paredes
adormecidos e descuidados
à morte que espreita escondida no mistério da noite...
Em que casa e andar estará dormindo
aquela de quem não sei o nome nem a vida,
mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo
quando nos cruzamos esta manhã?
Nesse momento,
ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos
das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro — Hoje é um dia de glória!
Mas tão estranho me pareceu aquele milagre entre dois desconhecidos,
que nem voltei a cabeça para trás...
Agora este desânimo sem nome
de quem traiu um dia inteiro de vida
e teima ir pela noite dentro
á espera nem sabe de quê ...
De tantas horas iguais estou farto!
Mas ao fim e sempre a mesma esperança: “um dia virá..."
E eu que tenho a vida desarrumada
como se fosse um milionário bêbado,
ergo-me e saio para a rua deslumbrado
e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.
E vai a coisa tão certa como uma religião,
quanto pressinto que me olham de todas as caras
como se espiassem um louco...
Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?
E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
Ah, um dia, quando a morte chegar,
hei de erguer para ela os meus olhos molhados,
e hei de contar-lhe a indiferença do mundo
e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
— assim como um menino fazendo queixas a sua mãe."
Manuel da Fonseca
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
Requiem por Muitos Maios
"Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?
No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.
E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles - os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer - nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.
Conheci tipos que viveram muito - os
que nunca souberam nada da própria vida."
Nuno Júdice
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?
No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.
E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles - os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer - nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.
Conheci tipos que viveram muito - os
que nunca souberam nada da própria vida."
Nuno Júdice
Chico
"Talvez não fosses forte
para a felicidade,
nem para o medo.
Olha as pessoas felizes:
ocultam-se na felicidade
como em casa, erguem
muros, fecham as janelas,
o medo
é a sua fortaleza.
O que disputam à morte
é maior que elas,
a morte não lhes basta."
Manuel António Pina
para a felicidade,
nem para o medo.
Olha as pessoas felizes:
ocultam-se na felicidade
como em casa, erguem
muros, fecham as janelas,
o medo
é a sua fortaleza.
O que disputam à morte
é maior que elas,
a morte não lhes basta."
Manuel António Pina
domingo, 7 de dezembro de 2014
Acendem-se as Luzes
"Acendem-se as luzes
nas ruas da cidade.
Ainda há claridade
ao alto das cruzes
da igreja da praça
e para lá dos telhados
já meio esfumados
na mesma cor baça
do casario velho
que recobre a encosta
e mal entremostra
as cores de Botelho,
sobranceiro à massa
fluida e movente
das cordas de gente
por onde perpassa
um ar de alegria
que é do tempo quente
e deste andar contente
que no fim do dia
leva para casa,
a paz das varandas,
o álcool das locandas,
tanta vida rasa
minha semelhante.
Solidão povoada
que a tarde cansada
suspende um instante
ao acender das luzes.
Em cada olhar uma rosa
de propósito formosa
para que a uses."
João José Cochofel
nas ruas da cidade.
Ainda há claridade
ao alto das cruzes
da igreja da praça
e para lá dos telhados
já meio esfumados
na mesma cor baça
do casario velho
que recobre a encosta
e mal entremostra
as cores de Botelho,
sobranceiro à massa
fluida e movente
das cordas de gente
por onde perpassa
um ar de alegria
que é do tempo quente
e deste andar contente
que no fim do dia
leva para casa,
a paz das varandas,
o álcool das locandas,
tanta vida rasa
minha semelhante.
Solidão povoada
que a tarde cansada
suspende um instante
ao acender das luzes.
Em cada olhar uma rosa
de propósito formosa
para que a uses."
João José Cochofel
Silêncio
"Já o silêncio não é de oiro: é de cristal;
redoma de cristal este silêncio imposto.
Que lívido museu! Velado, sepulcral.
Ai de quem se atrever a mostrar bem o rosto!
Um hálito de medo embaciando o vidrado
dá-nos um estranho ar de fantasmas ou fetos.
Na silente armadura, e sobre si fechado,
ninguém sonha sequer sonhar sonhos completos.
Tão mal consegue o luar insinuar-se em nós
que a própria voz do mar segue o risco de um disco...
Não cessa de tocar; não cessa a sua voz.
Mas já ninguém pretende exp'rimentar-lhe o risco!"
David Mourão-Ferreira
redoma de cristal este silêncio imposto.
Que lívido museu! Velado, sepulcral.
Ai de quem se atrever a mostrar bem o rosto!
Um hálito de medo embaciando o vidrado
dá-nos um estranho ar de fantasmas ou fetos.
Na silente armadura, e sobre si fechado,
ninguém sonha sequer sonhar sonhos completos.
Tão mal consegue o luar insinuar-se em nós
que a própria voz do mar segue o risco de um disco...
Não cessa de tocar; não cessa a sua voz.
Mas já ninguém pretende exp'rimentar-lhe o risco!"
David Mourão-Ferreira
sábado, 6 de dezembro de 2014
Teus olhos
"Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária."
Octavio Paz (trad. de Luis Pignatelli)
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária."
Octavio Paz (trad. de Luis Pignatelli)
sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
Desmaiar-se, atrever-se, estar furioso
"Desmaiar-se, atrever-se, estar furioso,
áspero, terno, liberal, esquivo,
altaneiro, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e criminoso;
não ter, fora do bem, centro ou repouso;
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
agastado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;
fechar o rosto ao claro desengano,
beber veneno por licor suave,
olvidar o proveito, amar o dano;
acreditar que o céu no inferno cabe,
doar a vida e a alma a um doce engano,
isto é amor, quem o provou bem sabe."
Lope de Vega (trad David Mourão-Ferreira)
áspero, terno, liberal, esquivo,
altaneiro, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e criminoso;
não ter, fora do bem, centro ou repouso;
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
agastado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;
fechar o rosto ao claro desengano,
beber veneno por licor suave,
olvidar o proveito, amar o dano;
acreditar que o céu no inferno cabe,
doar a vida e a alma a um doce engano,
isto é amor, quem o provou bem sabe."
Lope de Vega (trad David Mourão-Ferreira)
Guio-me
"Guio-me
Por teus olhos abertos
Sobre a trêmula e ardente
Superfície das lágrimas.
De tantas coisas
É feito o Mundo!
Entre escombros, espigas, dias e noites
Procuram os homens ansiosamente
O ramo de louro.
Quando, fatigados,
Próximos estão do limiar, do pórtico,
Os homens deixam, à entrada,
Suas mais queridas coisas.
E ei-los que apenas se incomodam,
E se interrogam,
Sobre o modo mais simples
De se despir e adormecer."
Por teus olhos abertos
Sobre a trêmula e ardente
Superfície das lágrimas.
De tantas coisas
É feito o Mundo!
Entre escombros, espigas, dias e noites
Procuram os homens ansiosamente
O ramo de louro.
Quando, fatigados,
Próximos estão do limiar, do pórtico,
Os homens deixam, à entrada,
Suas mais queridas coisas.
E ei-los que apenas se incomodam,
E se interrogam,
Sobre o modo mais simples
De se despir e adormecer."
Raul de Carvalho
As palavras são novas
"As palavras são novas: nascem quando
No ar as projectamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias.
Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias."
No ar as projectamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias.
Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias."
José Saramango
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Uma Vida Pequena
"Uma vida pequena
para que é que serviu?
Rasto de poeira
em tarde de estio.
Que sonhos, que pragas,
que fogos em vão
calcados de terra
reacenderão?
Chora a infância, chora.
Não a que tiveste.
Mas a que na troca
do tempo apetece."
João José Cochofel
para que é que serviu?
Rasto de poeira
em tarde de estio.
Que sonhos, que pragas,
que fogos em vão
calcados de terra
reacenderão?
Chora a infância, chora.
Não a que tiveste.
Mas a que na troca
do tempo apetece."
João José Cochofel
Escuto
"Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco"
Sophia Mello Breyner
Se o que oiço é silêncio
Ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco"
Porque é que este sonho absurdo
"Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?
Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida."
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?
Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida."
José Gomes Ferreira
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Fuga
"Vento que passas, leva-me contigo.
Sou poeira também, folha de outono.
Rês tresmalhada que não quer abrigo
No calor do redil de nenhum dono.
Leva-me, e livre deixa-me cair
No deserto de todas as lembranças,
Onde eu posa dormir
Como no limbo dormem as crianças."
Miguel Torga
Sou poeira também, folha de outono.
Rês tresmalhada que não quer abrigo
No calor do redil de nenhum dono.
Leva-me, e livre deixa-me cair
No deserto de todas as lembranças,
Onde eu posa dormir
Como no limbo dormem as crianças."
Miguel Torga
Soneto do Cativo
"Se é sem duvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;
o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;
se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;
não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!"
David Mourão Ferreira
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;
o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;
se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;
não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!"
David Mourão Ferreira
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
A Curva dos Teus Olhos
"A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito
É uma dança de roda e de doçura.
Berço nocturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.
Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.
Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar."
Paul Eluard
É uma dança de roda e de doçura.
Berço nocturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.
Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.
Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar."
Paul Eluard
Escada sem corrimão
"É uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol,
mas nunca passa do chão.
Os degraus quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos,
servem sequer de lição.
Quem tem medo não a sobe,
quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora,
o lastro do coração.
Sobe-se numa corrida,
correm-se perigos em vão.
Adivinhaste? é a vida,
a escada sem corrimão"
David Mourão Ferreira
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol,
mas nunca passa do chão.
Os degraus quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos,
servem sequer de lição.
Quem tem medo não a sobe,
quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora,
o lastro do coração.
Sobe-se numa corrida,
correm-se perigos em vão.
Adivinhaste? é a vida,
a escada sem corrimão"
David Mourão Ferreira
Eu me perdi
"Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote
Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra
Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar"
Sophia Mello Breyner
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote
Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra
Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar"
Sophia Mello Breyner
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
Gaivotas
"Não sei onde as gaivotas fazem ninho,
onde encontram a paz.
Sou como elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade."
Vincenzo Cardarelli (trad. Albano Martins)
onde encontram a paz.
Sou como elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade."
Vincenzo Cardarelli (trad. Albano Martins)
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