sábado, 25 de junho de 2016

Sábado

"Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino:

chegar à margem e ter medo da quietude da água."

Antonio Gamoneda
"Livro do Frio"
(trad José bento)

Prometeu na Fronteira

             I

"Talvez passemos pelo mesmo tormento.
Um deus caído na dor vale tanto
quando a dor se esta supera o pranto
e se levanta contra o firmamento.

Um deus imóvel é um deus sedento
e a mim cobrem-me com o mesmo manto.
Eu tenho sede e o que levanto
é a impotência de levantamento.

Oh que dura, feroz é a fronteira
da beleza e da dor; nem um Deus
pode cruzá-la com seu corpo puro.

Ambos estamos de igual maneira
a ferro e sede da solidão; os dois
acorrentados contra o mesmo muro."

          II

"E este dom de morrer, esta potência
degoladora da dor, de onde
nos vem? Em que deus se esconde
esta forma sinistra de clemência?

Uma única divina descendência
a esta zona de sombra corresponde.
Se falas a um deus, quando responde,
vem a morte por correspondência.

Se não fosse cobarde, se, mais forte,
num raio pudesse pela boca
expulsar este medo da morte,

como este imortal acorrentado
seria puro na dor. Oh, rocha,
meu mundo de sede, mundo olvidado"


Antonio Gamoneda
"Oração Fria"
(Trad João Moita)

O Ganho

"Nada perdeu,
Pois nada possuía,
Quem chegava inválido e despido.
Mas ganhou pouco a pouco, depressa,
o melhor de saudades, preguiça acobardada,
e uma medida rasa de incertezas
onde a ilusão com tédio vai procurar migalhas."

Pere Quart
"Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
(Trad  José Bento)

domingo, 19 de junho de 2016

Terra de Ninguém

"Todos têm para mim o desprezo dos fortes,
todos têm para mim
o desprezo
dos que encontram na vida um caminho
- que muitas vezes não encontraram
mas julgaram encontrar.

Caminho
que pode ser o seu
mas é um caminho...

Eu
continuarei a perder-me nos horizontes largos,
a andar às cegas entre o mal e o bem...

que a minha terra
é Terra de Ninguém."

João José Cochofel

Sonho Perdido

"Como foi que o meu sonho se perdeu
No liso descampado desta vida?
Distraída
Atenção
Que tão ingloriamente empobreceu
Quem não tinha outro vinho e outro pão!

Na fundura dos bolsos não encontro
Nem sequer a lembrança desenhada
Do seu calor!
Perdi o sonho… E resta-me o pudor
Deste triste poema ressequido…
Perdi o sonho… E nunca se encontrou
Nenhum sonho perdido."

Miguel Torga

Perplexidade

"Hesito no caminho.
Ninguém segue este rumo...
É noutra direcção
Que o vento leva o fumo
Das paixões...
Chegar, sei que não chego,
De nenhuma maneira;
Mas queria ao menos ir no lírico sossego
De quem não se enganou na estrada verdadeira.

E não vou.
Cada vez mais sozinho
Na solidão,
Duvido da certeza dos meus passos.
Vejo a sede ancestral da multidão
Voltar costas às fontes que pressinto,
E fico na mortal indecisão
De afirmar ou negar o cego instinto
Que me serve de guia e de bordão."

Miguel Torga

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Panfleto contra a Paisagem

"Apaga-te, lua!
- lâmpada dos lírios e dos cães.

Não finjas de alma
esta realidade violenta
que me dói até às raízes.

Não pintes de mistério
estas bocas de fome
onde só há metafísicas de pão negro.

Não abras asas
na planície das pedras
de fogo apodrecido.

Apaga-te lua!
Peço-te que te apagues!
Para os tímidos poderem amar-se à vontade na sombra sem olhos,
para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas às castelãs de carne invisível,
para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo da noite,
para os trémulos morrerem heróicos em barricadas de imaginação,
para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão verde dos caixotes,
para os cegos dizerem: «Não vemos porque não há luar!»,
para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a arrastar mantos negros,
para os escorraçados saírem dos canos lôbregos
e forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
onde só os pobres deitaram moedas falsas,
para os visionários mergulharem as mãos na noite
em busca de outra lua sem vincos de caveira,
para as mães das caves convencerem os filhos: «Moramos num palácio às escuras»...

Ouviste, lua?
Apaga-te!
- lâmpada dos cães e dos poetas magros."

José Gomes Ferreira