domingo, 30 de novembro de 2014

Werner Bischof


Pedagogia

"Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende.
A vida compra e vende
A perdição.
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!

Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de-ser!"


Miguel Torga

Da maneira mais simples

"É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Ás vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações."

Eugénio de Andrade

Izis Bidermanas


"Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.

Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.

Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos."

Edgar Allan Poe

Um Dia a Solidão

"Um dia, a solidão
- que dor de vergonha! -
levou-me pela mão
para seu baluarte
e disse-me " sonha!
O sonho é a tua lei"

E eu para ali fiquei,
Tão farto de ser eu,
A ouvir o meu coração
Bater em toda a parte,
Nos astros do chão,
Nas pedras do céu.

E eu para ali fiquei
A arrancar a carne das unhas,
Sozinho no meu jardim,
A viver sem testemunhas
No espelho de mim.

E eu para ali fiquei
Com o mundo a obedecer aos meus caprichos:
A luz, as flores, os bichos

E o sol enforcado na floresta,
Na alucinação
Duma corda de lava
A baloiçar ao vento da minhaalma à solta…

E eu para ali fiquei
- pobre de mim que ignorava
a dor da verdadeira solidão
que é esta! Que é esta!…

Muita gente à minha volta
E eu aos tombos pelas ruas,
longe de todos e de mim,
a morrer pelos outros
em barricadas de estrelas e de luas."


José Gomes Ferreira

sábado, 29 de novembro de 2014

gostaria de descrever

"Gostaria de descrever a emoção mais simples
alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
procurando chegar a dardos de chuva ou sol

gostaria de descrever a luz
que está a nascer em mim
mas sei que não se parece
com nenhuma estrela
porque não é tão brilhante
nem tão pura
e é inconstante

gostaria de descrever a coragem
sem arrastar atrás de mim um leão poeirento
e também a ansiedade
sem agitar um copo cheio de água

dizendo de outra maneira
daria todas as metáforas
em troca de uma palavra
arrancada do meu peito como uma costela
por uma palavra
contida dentro dos limites
da minha pele
mas aparentemente isso não é possível

e só para dizer — eu amo
corro em círculos como um louco
apanhando mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que afinal de contas não é feita de água
pergunta à água por um rosto

e a ira
diferente do fogo
pede-lhe emprestada
uma língua loquaz

tudo tão emaranhado
tudo tão emaranhado
em mim
que o senhor de cabelo branco
desfez o emaranhado de uma vez por todas
e disse este é o sujeito
e este é o complemento

adormecemos
com uma mão debaixo da cabeça
e com a outra
num aterro de planetas

os nossos pés abandonam-nos
e tocam a terra
com as suas raízes minúsculas
que de manhã
arrancamos dolorosamente"

Zbigniew Herbert (trad. de Jorge Sousa Braga)

Werner Bischof


Baptismo

"Os mais difíceis poemas onde falo de amor
são aqueles em que o amor contempla.

O amor esquece ao contemplar,
esquece que não existe e encantado olha
um raio anónimo sob o vento mais leve.

Contempla, amor, contempla.
E vai criando o nome que darás ao raio."

Jorge de Sena

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A Casa do Tempo Perdido

"Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado."


Carlos Drummond de Andrade

Izis Bidermanas


Espaço curvo e finito

"Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti."

José Saramango

E por vezes as noites duram meses

"E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos."

David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Paul Strand


Eu ontem vi-te

"Eu ontem vi-te...
Andava a luz
do teu olhar,
que me seduz,
a divagar
em torno de mim.
E então pedi-te,
não que me olhasses,
mas que afastasses,
um poucochinho,
do meu caminho,
um tal fulgor.
De medo, amor,
que me cegasse,
me deslumbrasse
fulgor assim."

Ângelo de Lima

Julien Coquentin


Dia de Anos

"Noto isto: estou a ficar
menos certo, confuso,
dissolvendo-me no ar
quotidiano, tosco
girão de mim, desfiado
e roto pelos punhos.

Compreendo: vivi
um ano mais, e isso é bem duro.
Mover o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!

Para viver um ano é necessário
muitas vezes morrer muito."

Angél González (trad. José Bento)

O Nosso Mundo é Este

"O nosso mundo é este
Vil suado
Dos dedos dos homens
Sujos de morte.

Um mundo forrado
De pele de mãos
Com pedras roídas
das nossas sombras.

Um mundo lodoso
Do suor dos outros
E sangue nos ecos
Colado aos passos…

Um mundo tocado
Dos nossos olhos
A chorarem musgo
De lágrimas podres…

Um mundo de cárceres
Com grades de súplica
E o vento a soprar
Nos muros de gritos.

Um mundo de látegos
E vielas negras
Com braços de fome
A saírem das pedras…

O nosso mundo é este
Suado de morte
E não o das árvores
Floridas de música
A ignorarem
Que vão morrer.

E se soubessem, dariam flor?

Pois os homens sabem
E cantam e cantam
Com morte e suor.

O nosso mundo é este….

( Mas há-de ser outro.)"


José Gomes Ferreira

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Henri Cartier Bresson



Depois de mim

"Um dia (sei-o bem)
os campos ficarão eternamente floridos
e a chaga que me inquieta
deixará de sangrar em todos os peitos.
Os homens já não estarão curvados sobre as terras.
E a leiteira não virá mais trazer-me as bilhas com seu ar de humildade.
A mulher dos ovos e o homem da fruta,
o rapaz pobre envergonhado de dizer: eu sei,
o camponês prestando contas da estação,
os vultos negros do subsolo,
a linda mãe solteira,
deixarão de sorrir com humildade.
Humildade ficará nos dicionários como esqueleto em museu arqueológico.

Eu próprio nunca mais farei baixar as pálpebras
e deixarei que o sol me inunde bem nos olhos.

Um dia
(ah sinto-o bem para além das milhentas folhas de todos os tratados).
uma onda de amor invadirá tudo e todos.
E será uma primavera diferente de todas as primaveras
porque ainda não foram inventadas as palavras para exprimi-la.

Simplesmente, nesse dia primeiro da nova criação, eu já terei partido.
Minha carne estará funda de mais para sentir o beliscão da alegria.
E os olhos cheios de terra
não verão os campos levantados
nem os campos eternamente floridos
nem a leiteira sem o seu ar de humildade

Porém, que importa?
Um dia, sei-o bem, todos estarão até-que-enfim de acordo.
Que importa a minha ausência?
Que importa que eu não venha a saborear os frutos da própria árvore?
Que é isso -
ao pé da inabalável certeza desse dia admirável?"

Mário Dionísio

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Praia do Esquecimento

"Fujo da sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida nem consente
rumor de gente
na praia desolada.

Apenas decisão de esquecimento:
mas só neste momento eu a descubro
como a um fruto rubro
de que, sem já sabê-lo, me sustento.

E do Sol amarelo que há no céu
somente sei que me queimou a pele.
Juro: nem dei por ele
quando nasceu."

David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Ave da Esperança

"Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir - esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer."

Miguel Torga

Boris Smelov


Exorcismo

"Canto
O meu desencanto.
Este cansaço
Lasso
De tudo quanto,

Esta melancolia
Penitente
De quem sente
Que luta e que porfia
Inutilmente.

Esta baça impressão
De que nada vale.
Esta tristeza triste
Que resiste
Às razões da razão inconformada."

Miguel Torga

sábado, 22 de novembro de 2014

Tu

"Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo"

Pablo Neruda

Celil Sezer


É a mesma a ruazinha sossegada

"É a mesma a ruazinha sossegada.
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: - Alegria - Risos
Depois do Circo já ter ido embora!.."

Mario Quintana

Testemunha de Cinza

"Na rocha em que bate o mar
ou na casca seca dessa árvore,
no vento que uiva contra os vidros,
sobre o rasto da areia ou na terra mais dura,
no fumo que se desfaz nas tuas mãos,
escreve, escreve, como se ainda descobrisses as palavras.
Escreve para peles ou pedras,
para brancos cavalos, para aqueles olhos
que nunca para ti olharam e para que nunca tu olhaste.
Escreve sem orgulho, mas também sem falsa modéstia,
que não foi em vão a tua passagem pelo mundo.
Esquece depois tão estúpida frase
e olha o mar, as velas daquele barco
que vem resgatar-te, o seu paciente cabecear sobre as ondas,
as luzes que se reflectem na espuma.
E escreve - sobretudo - quando o vires afundar-se,
quando desaparecer como o sonho ou a bruma,
quando já não existir - sabemos que nunca existiu -
escreve e repete-o em voz alta para o surdo mar, para o céu longínquo.
Aprende assim, testemunha de cinza,
o final implacável do teu ilusório labor,
e então, sem teres dúvidas - que não trema a tua mão -
escreve, escreve, escreve, escreve."

Juan Luis Panero (trad. de Joaquim M Magalhães)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Frederick B. Scheel


Ecloga

"Sonhei
contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes, tu a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo."


Nuno Júdice

Gaiola de Vidro

"Como paredes
através das quais
o mundo vemos pelo ser dos outros
quem vamos conhecendo nos rodeia
multiplicando as faces da gaiola
de que se tece em volta a nossa vida.

No espaço dentro (mas que não depende
do número de faces ou distância entre elas)
nós somos quem somos: só distintos
de cada um dos outros, para quem
apenas somos a face em muitas,
pelo que em nós se torna, além do espaço,
uma visão de espelhos transparentes.

Mas o que nos distingue não existe"

Jorge de Sena

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

É assim, a música

"A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração – por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas."

Eugénio de Andrade

Toots Thielemans - Smile


Não tenho medo nem esperança

"Não tenho medo nem esperança. De um hotel fora do
destino, vejo uma praia negra e, longínquas, as grandes
pálpebras de uma cidade cuja dor não me afecta.

Venho do metileno e do amor; tive frio debaixo dos
tubos da morte.

Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança."

Antonio Gamoneda (trad. de José Bento)

Cântico

"Mundo à
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora

Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.

Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida."

Miguel Torga

Araquem Alcantara


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Medida

"Jogo contra o destino.
Cada minuto, cada desafio.
Livre neste baldio
Da liberdade humana,
Arrisco a consciência dos meus actos
Na roleta da sorte.
O triunfo e a derrota não me importam.
Nenhum triunfo vale o sol que o doira,
E nenhuma derrota o é na morte
Que temos certa.
Quero apenas fazer a descoberta
Do que posso e não posso,
Sem poder nada.
Aprendo a conhecer o meu tamanho
Pela maneira como perco ou ganho."

Miguel Torga

Pepe Romero y Javier García Moreno


Solidão

"Só, como a fonte no areal sem vida.
Só, como o sol no céu deserto.
Só, de cabeça erguida,
Humanamente certo.

Só, a nascer, a ser e a morrer,
Recto como um pinheiro que brotou
E cresceu e caiu, sem se torcer
Ao tempo vário que por ele passou."

Miguel Torga

Adriana Zehbrauskas


Ideário para a criação

"Quando, em ti próprio, ouvires algum combate
do sonho em luta com a sua própria alma
e o mundo te parecer maior que a vida
e a vida te parecer a velha estrada
onde só tu não perseguiste o sonho,
defende, de ambos, o que for vencido.

Quando, à tua beira, houver um perseguido
e o escárneo se abater sobre o que ele pensa
e o mundo inteiro o perseguir mentindo
uma mentira maior que a dessa ideia,
defende-a como tua antes que o mundo
esmague em si próprio a chama em que se ateia.

Quando, como hoje, os crimes forem tantos
que as praias sequem no desdém das ondas,
e o melhor homem for um criminoso
voltando ansioso ao local do crime,
e o sangue nem lhe suje a ansiedade
porque não há mais sangue que ciências loucas,
grita aos ventos da morte que os traíram -
e na terra se ouça que a verdade é falsa
e só eram verdade os que partiram."

Jorge de Sena

Já não me importo

"Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz"

Fernando Pessoa

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Dirk de Herder


São os Rios

"Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa."

Jorge Luis Borges

Certa Memória...

"Certa memória, memória inquieta
- não do teu corpo, que nunca vi,
não da tua alma, também secreta,
mas que é a tua, mas que é de ti –

faz que esta vida sem horizonte
se justifique tão necessária
que em tudo cante, que em tudo conte
da sua fonte, múltipla e vária."

António Luís Moita

domingo, 16 de novembro de 2014

John Williams


Legado

"O que eu espero, não vem.
Mas ficas tu, leitor, encarregado
De receber o sonho.
Abre-lhe os braços, como se chegasse
O teu pai, do Brasil,
A tua mãe, do céu,
O teu melhor amigo, da cadeia,
Abre-lhe os braços como se quisesses
Abarcar toda a luz que te rodeia.

Não lhe perguntes porque tardou tanto
E não chegou a tempo de me ver.
Uns têm a sina de sonhar a vida,
Outros de a colher."

Miguel Torga

Esta é a Terra Onde o Sofrimento

"Esta é a terra onde o sofrimento
é a medida dos homens. Dão
pena os condes com seu fiel faisão
e os cobardes com seu fiel lamento.

A beleza serve-nos de tormento
e a injustiça concede-nos o pão.
Um dia brindareis pelos que tenham
convertido a dor em fundamento.

Nós os que vivemos para dar alcance
a tão imensa luz que hoje não poderia
um deus vê-ja sem ficar cego,

Ainda teremos de esgotar o lance:
arrancar ao silêncio a agonia
como quem tira o coração ao fogo"

Antonio Gamoneda (trad. de João Moita)

sábado, 15 de novembro de 2014

Henri Dauman


Contigo

"Minha terra?
Minha terra és tu.

Minha gente?
Minha gente és tu.

O desterro e a morte
para mim estão onde
não estejas tu.

E minha vida?
Diz, minha vida,
Que és, se não és tu?"

Luis Cernuda (trad. de José Bento.)

Fantasia

"Despedacei tanto sonho
ao correr atrás da vida,
que tendo-a por mim segura
e com ela os meus segredos
vi que deixava perdidas
as razões desse correr,
e que tendo enfim a chave
já perdera a fechadura."

Adolfo Casais Monteiro

Comunicado

"Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair."

Miguel Torga

Alessandro Galloni


Epitáfio Diante um Espelho

"Dura há-de ser para ti a vida
que tuas crenças sacrificaste a uma estranha honradez,
para ti cuja única certeza é tua lembrança
e, por isso, teu sepulcro mais aziago.
Dura há-de ser a vida, quando os anos passarem
e por fim destruírem a pátria sonhadora da tua adolescência,
quando vires, como hoje, este fantasma
que anteriormente te consolou com sua formosura.
Quando o amor, como um vestido roto.
não possa proteger tua tristeza
e um motivo de zombaria, piedade ou assombro,
para os olhos mais puros seja apenas.
Duro há-de ser para o teu corpo ver morrer o desejo,
a juventude, tudo o que foste,
e procurar sem paixão o teu repouso
na surda ternura do que é débil,
na grísea destruição que alguma vez amaste.
«É a lei da vida», dizem velhos estéreis,
«e nada senão Deus pode mudá-lo» repetem,
sob a luz da noite, lentas sombras inúteis.
Dura há-de ser a vida, tu que amaste o mundo
que com um olhar ou uma suave carícia sonhaste possuí-lo,
quando a absurda farsa que tão bem conheces
não estiver já enfeitada com o efémero e belo.
Dura há-de ser a vida até àquele instante
em que veles tua memória neste espelho:
teus frios lábios não terão já refúgio
e em tuas mãos vazias abraçarás a morte."

JUAN LUIS PANERO (trad. José Bento)

Velho tapete

"Toda a gente era pobre naquele tempo,
todos entreteciam
sem o saber
– e às vezes sorriam –
os fios de tristeza
que formavam a trama da vida
(inconsistente tela, mas
que fio teimoso, a esperança).
Umas linhas
de amor douravam
uma ponta daquele tapete sombrio
na qual eu era um menino que corria
não sabendo de quê ou para onde,
talvez para o espaço luminoso
que urdiam incansáveis
as obstinadas mãos amorosas.

Nunca cheguei a essa luz.
Quando ia alcançá-la,
o tempo, mais veloz,
já a tinha apagado, com a sua pátina."


Ángel González

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Elliott Erwitt


Degraus

"Assim como as flores murcham
E a juventude cede à velhice,
Também os degraus da Vida,
A sabedoria e a virtude, a seu tempo,
Florescem e não duram eternamente.
A cada apelo da vida deve o coração
Estar pronto a despedir-se e a começar de novo,
Para, com coragem e sem lágrimas se
Dar a outras novas ligações. Em todo
O começo reside um encanto que nos
Protege e ajuda a viver
Serenos transpunhamos o espaço após espaço,
Não nos prendendo a nenhum elo, a um lar;
Sermos corrente ou parada não quer o
espírito do mundo
Mas de degrau em degrau elevar-nos e aumentar-nos.
Apenas nos habituamos a um círculo de vida,
Íntimos, ameaça-nos o torpor;
Só aquele que está pronto a partir e parte
Se furtará à paralisia dos hábitos.
Talvez também a hora da morte
Nos lance, jovens, para novos espaços,
O apelo da Vida nunca tem fim ...
Vamos, Coração, despede-te e cura-te!"

Hermann Hesse

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Andrés Segovia


Das Utopias

"Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não quere-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
a magica presença das estrelas!"

Mário Quintana

Quase um poema de amor

"Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
--- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor"

Miguel Torga

Chester Higgins


Como de Súbito na Vida

"Como de súbito na vida tudo cansa!
e cansa-nos a vida e nos cansamos dela,
ou ela é quem se cansa de nós mesmos,
na teima de existir e desejar?
Porque, neste cansaço, não o que não tivemos,
ou que perdemos, ou nos foi negado,
o que de que se cansa, mas também
o quanto temos, nos ama, se nos dá
a até os simples gozos de estar vivo.
Um dia é como se uma corda se quebrara,
ou como se acabara de gastar-se,
que nos prendia a tudo e tudo a nós.
Não é que as coisas percam importância,
as pessoas se afastem, se recusem,
ou nós nos recusemos. Não. è mais
ou menos que isto- se deseja igual
ao como até há pouco desejávamos.
É talvez mais. Mas sem valor algum.
O dia é noite, a noite é dia, a luz
se apaga ou se derrama sobre as coisas
mas elas deixam de ter forma e cor,
ou se sumir no espaço como forma oculta.
E o que sentimos é pior que quanto
dantes sentíamos nas horas ásperas
da fúria de não ter ou de ter tido.
Porque se sente o não sentir. Um tédio
Não como o tédio antigo. Nem vazio.
O não sentir. Que cansa como nada.
Até dizê-lo cansa. É inútil. Cansa."

Jorge Cândido de Sena

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Vita Brevis

"A vida breve, revele-a
a pulsação que lateja
no efémero da camélia,
ou no lustro da cereja,

é a do coração que dita
a dor que lhe sobejou
a tentar deixá-la escrita
mas não conta o que escapou

pelo espelho, quando a máscara
vai perdendo o frenesim,
e agora tanto lhe faz: para
o caso é mesmo assim,

nem há lixa ou aguarrás
que apague as marcas que traz."


Vasco Graça Moura

Não Roubes

"Não roubes
à tua pura solidão
teu ser calado e firme.
Evita o necessário
explicar-te a ti mesmo
contra quase toda gente.
Tu sozinho encherás
inteiramente o mundo."

Juan Ramón Jiménez

Everness

"Só uma coisa há. É o esquecimento.
Deus, que salva o metal, salva a escoria
E cifra na sua profética memória
as luas que serão e que hão sido.

Já tudo está. Os mil reflexos,
Que entre os dois crepúsculos do dia
Teu rosto foi deixando nos espelhos
e os que irá deixando ainda.

E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Não têm fim seus árduos corredores

E as portas se fecham a teu passo,
Só do outro lado do ocaso
Verás os Arquétipos e Esplendores."

Jorge Luis Borges

Murray Mitchell


Amar-te é isto...

"Amar-te é isto:
uma palavra que está por dizer
uma árvore sem folhas
que dá sombra"

Juan Gelman

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Santo e Senha

"Deixem
passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada

Deixem, que vai apenas
Beber água de sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão
Que vai ser uma estrela no chão."

Miguel Torga

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

André Kertész


Tudo na Vida

"Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã."

 Fernando Namora

Do que Nada se Sabe

"A lua ignora que é tranquila e clara
E não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias
Ao abstracto xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano,
Breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta
Que eu sou? Que cume pode ser a meta?"

Jorge Luis Borges

Realidade

"Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto —
Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava, então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!

Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais
lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado físisca e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol,
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez..."

Álvaro de Campos

domingo, 9 de novembro de 2014

Á Água

"Ninguém ouve a canção, mas o ribeiro canta!
Canta, porque um alegre deus o acompanha!
Quantos mais tombos, mais a voz levanta!
Canta, porque vem limpo da montanha!

Espelho do céu, é quanto mais partido
Que mais imagens tem da grande altura.
E quebra-se a cantar, enternecido
De regar a paisagem de frescura.

Água impoluta da nascente,
És a pura poesia
Que se dá de presente
Às arestas da humana penedia..."

Miguel Torga

sábado, 8 de novembro de 2014

Retrato

"Tens nos olhos a luz que me faltava.
Agora posso ver o que não via:
O rosto da alegria

No teu rosto.

vinho ainda a sonhar
Na fervura do mosto,
Não sabes duvidar
Das ilusões.

És a vida que esperas...
Em ti, as estações
São todas primaveras."

Miguel Torga

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

John Williams - Cavatina


Recordo Ainda

"Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!.."

.Mario Quintana

Perfume

"Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?"

Mia Couto

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Deixem Passar

"Deixem passar...

Havia sentinelas a guardar
A fronteira do sonho proibido.
Mas ergui, atrevido,
A voz de sonhador,
E passei
Como um rei,
Sem dar mostras do íntimo terror.

E cá vou a passar,
aterrado e sozinho,
A lembrar
O santo-e-senha com que abri caminho..."

Miguel Torga

Retrato

"O meu perfil é duro como o perfil do mundo.
Quem adivinha nele a graça da poesia?
Pedra talhada a pico e sofrimento,
É um muro hostil à volta do pomar.
Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto
Faz um poema doce e desejado:
Mas quem passa na rua
Nem sequer sonha que do outro lado
A paisagem da vida continua."

Miguel Torga

Poesia

"Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira."

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos

"Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!"


Mário Quintana

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Baden Powel



Cântico

"Não, tu não és um sonho, és a existência
Tens carne, tens fadiga e tens pudor
No calmo peito teu. Tu és a estrela
Sem nome, és a morada, és a cantiga
Do amor, és luz, és lírio, namorada!
Tu és todo o esplendor, o último claustro
Da elegia sem fim, anjo! mendiga
Do triste verso meu. Ah, fosses nunca
Minha, fosses a idéia, o sentimento
Em mim, fosses a aurora, o céu da aurora
Ausente, amiga, eu não te perderia!
Amada! onde te deixas, onde vagas
Entre as vagas flores? e por que dormes
Entre os vagos rumores do mar? Tu
Primeira, última, trágica, esquecida
De mim! És linda, és alta! és sorridente
És como o verde do trigal maduro
Teus olhos têm a cor do firmamento
Céu castanho da tarde - são teus olhos!
Teu passo arrasta a doce poesia
Do amor! prende o poema em forma e cor
No espaço; para o astro do poente
És o levante, és o Sol! eu sou o gira
O gira, o girassol. És a soberba
Também, a jovem rosa purpurina
És rápida também, como a andorinha!
Doçura! lisa e murmurante... a água
Que corre no chão morno da montanha
És tu; tens muitas emoções; o pássaro
Do trópico inventou teu meigo nome
Duas vezes, de súbito encantado!
Dona do meu amor! sede constante
Do meu corpo de homem! melodia
Da minha poesia extraordinária!
Por que me arrastas? Por que me fascinas?
Por que me ensinas a morrer? teu sonho
Me leva o verso à sombra e à claridade.
Sou teu irmão, és minha irmã; padeço
De ti, sou teu cantor humilde e terno
Teu silêncio, teu trêmulo sossego
Triste, onde se arrastam nostalgias
Melancólicas, ah, tão melancólicas...
Amiga, entra de súbito, pergunta
Por mim, se eu continuo a amar-te; ri
Esse riso que é tosse de ternura
Carrega-me em teu seio, louca! sinto
A infância em teu amor! cresçamos juntos
Como se fora agora, e sempre; demos
Nomes graves às coisas impossíveis
Recriemos a mágica do sonho
Lânguida! ah, que o destino nada pode
Contra esse teu langor; és o penúltimo
Lirismo! encosta a tua face fresca
Sobre o meu peito nu, ouves? é cedo
Quanto mais tarde for, mais cedo! a calma
É o último suspiro da poesia
O mar é nosso, a rosa tem seu nome
E recende mais pura ao seu chamado.
Julieta! Carlota! Beatriz!
Oh, deixa-me brincar, que te amo tanto
Que se não brinco, choro, e desse pranto
Desse pranto sem dor, que é o único amigo
Das horas más em que não estás comigo."

Vinícius de Moraes

Destino

"Á ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?"

Mia Couto

Fernando Fernandes


Ramo em Flor

"Para cá e para lá
sempre se inclina ao vento o ramo em flor,
para cima e para baixo
sempre meu coração vai feito uma criança
entre claros e nebulosos dias,
entre ambições e renúncias.
Até que as flores se espalham
e o ramo se enche de frutos,
até que o coração farto de infância
alcança a paz
e confessa: de muito agrado e não perdida
foi a inquieta jogada da vida."

Hermann Hesse

Arte Poética

"Olhar o rio feito de tempo e água,
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que passam os rostos como a água.

Descobrir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar; sentir que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.

No breve dia ou no ano ver um símbolo
dos dias do homem e também seus anos,
e o longo ultraje converter dos anos
num rumor, numa música e num símbolo:

ver o sonho na morte, ver no ocaso
um ouro triste – tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora ou como o ocaso.

Às vezes, pelas tardes, uma cara
nos mira desde o fundo de um espelho:
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
humilde e verde. A arte é essa Ítaca,
de verde eternidade, e não prodígios.

Também é como um rio interminável
que passa e fica, e é o cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável."

Jorge Luis Borges

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Rabisco na Areia

"Que encantamento e beleza
sejam brisa e calafrio,
que o delicioso e bom
tenha escassa duração
- fogo de artifício, flor,
nuvem, bolha de sabão,
riso de criança, olhar
de mulher no espelho, e tantas
outras coisas fabulosas
que, mal se descobrem, somem –
disso, com pena, sabemos.
Ao que é permanente e fixo
não queremos tanto bem:
gemas de gélido fogo,
ouros de pesado brilho,
por não falar nas estrelas
que tão altas não parecem
transitórias como nós
e não calam fundo na alma.
Não: parece que o melhor,
mais digno de amor, se inclina
para o fim, beirando a morte,
e o que mais encanta – notas
de música, que ao nascerem
já fogem, se desvanecem –
são brisas, são águas, caças
feridas de leve mágoa,
que nem pelo tempo de uma
batida de coração
deixam-se reter, prender.
Som após som, mal se tocam,
já se esvaem, vão-se embora.
Nosso coração assim
leal e fraternalmente
se entrega ao fugaz, ao vivo,
não ao seguro e durável.
Cansa-nos o permanente
- rochas, mundo estelar, jóias –
a nós, transmutantes, almas
de ar e bolhas de sabão,
cingidos ao tempo, efêmeros
a quem o orvalho na rosa,
o idílio de um passarinho,
o fim de um painel de nuvens,
fulgor de neve, arco-íris,
borboleta que esvoaça,
eco de riso que só
de passagem nos alcança,
pode valer uma festa
ou razão de dor. Amamos
o que é semelhante a nós,
e entendemos os rabiscos
que o vento deixa na areia."

Hermann Hess

domingo, 2 de novembro de 2014

J S Bach by Segovia


O Espelho

"Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos."

Mia Couto

Michele Clement


No Teu Rosto

"No teu rosto
competem mil madrugadas

Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas

A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego"


Mia Couto

sábado, 1 de novembro de 2014


Neblina

"Estranho caminhar na neblina!
Solitários estão os arbustos e as pedras.
As árvores não se veem entre si,
todas estão sozinhas.

Cheia de amigos era minha vida
quando a vida me era leve.
Agora que cai a neblina,
não me resta ninguém.

Ninguém alcança a sabedoria
se não conhece a escuridão
que silenciosa e inevitável
de tudo nos separa.

Estranho caminhar na neblina!
Viver é solidão.
Ninguém conhece ninguém,
todos estamos sós."


Hermann Hesse

Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."


Mario Quintana