quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Pérola Solta

"Sem que eu a esperasse, 
Rolou aquela lágrima 
No frio e na aridez da minha face. 
Rolou devagarinho..., 
Até à minha boca abriu caminho. 
Sede! o que eu tenho é sede! 
Recolhi-a nos lábios e bebi-a. 
Como numa parede 
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou, 
Na boca me cantou, 
Breve como essa lágrima, 
Esta breve elegia."

José Régio

Canção para uma valsa lenta

"Minha vida não foi um romance… 
Nunca tive até hoje um segredo. 
Se me amar, não digas, que morro 
De surpresa… de encanto… de medo… 
Minha vida não foi um romance 
Minha vida passou por passar 
Se não amas, não finjas, que vivo 
Esperando um amor para amar. 
Minha vida não foi um romance… 
Pobre vida… passou sem enredo… 
Glória a ti que me enches de vida 
De surpresa, de encanto, de medo! 
Minha vida não foi um romance… 
Ai de mim… Já se ia acabar!"

Mário Quintana

Testamento

"O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero Rezei:
ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!"

Manuel Bandeira

Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

"Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço!

Mas não.

Lá está o sol do costume
com a exactidão
duma bola de lume
desenhada a compasso...

...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...

e desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.

Ah! Como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?"

José Gomes Ferreira

A Base e o Timbre

"Iluminar-se a análise
por trás de cada ponto da pupila
desembacia a base
de ver. E ver culmina
na ordem luminosa por onde as mãos se fazem
inteligência que desliza
e arde quase
no material que surge análise
da ciência divina.
*
Benzo-me em nome da melancolia,
ciência teológica que funda
sermos a história reflectida
de não haver nenhuma,
senão a de um espelho que ilumina
os pensamentos da sua face pura
e onde sermos pensados nos inclina
a ver história onde só há leitura
do esquecimento e da melancolia,
ciêncas da lógica absoluta."

Fernando Echevarría

Figuras

"A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.

   I
À noite, os animais que tinham ido
beber o brilho que lhe vem da noite,
paravam a cheirar. E a ouvir o ruído
crescer do sítio de onde corria a fonte.
À noite os animais eram antigos.
E, à volta deles, tudo o mais que fosse
assentava na sombra. E estendia um sítio
onde o tempo crescia para longe.

   II

A luz dos animais sobe da negra
solidão que os estrutura.
E os constrange à tristeza
dessa escuridão primordial que os funda.
A luz dos animais sobe. Segrega
o conciso halo de enxúndia
com que a lavração da gleba
percorre os membros da corpulência nua.
E a luz dos animais pára. Os assenta
dentro da exterioridade pura
de os vermos sós. Na certeza
do peso ruminante da estatura."
Fernando Echevarría
"Geórgicas"

O Tempo Vive

"O tempo vive, quando os homens, nele,
se esquecem de si mesmos,
ficando, embora, a contemplar o estreme
reduto de estar sendo.
O tempo vive a refrescar a sede
dos animais e do vento,
quando a estrutura estremece
a dura escuridão que, desde dentro,
irrompe. E fica com o uivo agreste
espantando o seu estrondo de silêncio."

Fernando Echevarría 
"Sobre os Mortos"

Resgate

"Meus pés moídos na calçada,
minhas tardes envenenadas de álcoois nos cafés,
e o vazio por dentro
a encher o tédio das horas sem nome.

Tudo isto
- moeda triste
que nem chega a pagar o sol da tardinha
e a poeira de feno que pontilhou de oiro
teu corpo entre trigais."

João José Cochofel
"Breve"

Vidro Côncavo

"Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Saber a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar

Doi esta corda vibrante
A corda que o barco prende
à fria argola do cais
Se uma onda que a levante
vem logo outra qua a distende.
Não tem descanso jamais."

António Gedeão