sábado, 13 de agosto de 2016

Testigo de Ceniza

"Na rocha batida pelo mar
ou na casca seca dessa árvore,
é o vento que uiva contra os vidros,
sobre a pegada da areia ou na terra mais dura,
no fumo que se te desfaz entre as mãos,
escreve, escreve, como se descobrisses ainda as palavras.
Escreve para peles ou pedras,
para brancos cavalos, para esses olhos
que nunca te olharam e que tu jamais olhaste.
Escreve sem orgulho, mas tão pouco com falsa modéstia,
que não foi em vão tua passagem pelo mundo.
Esquece a seguir tão estúpida frase
e olha para o mar, as velas desse barco
que vem resgatar-te, seu paciente cabecear sobre as ondas,
as luzes reflectidas na espuma.
E escreve – sobretudo – quando o vires afundar-se,
quando desaparecer como o sonho ou a bruma,
quando já não existir – pois é sabido que jamais existiu –
escreve e repete-o em voz alta para o surdo mar, para o céu distante.
Aprende assim, testemunha de cinza,
o final implacável de teu labor ilusório
e então, sem hesitar - que a mão não te trema –
escreve, escreve, escreve, escreve."

Juan Luis Panero


Um Velho em Veneza

"Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos,
o poeta Ezra Pound,
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Livi.
Comentou-lhe, sem autocompaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema como um cadáver -,
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas."

Juan Luis Panero

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Sem Transacção

"Sem transacção
nem balança,
tão boa a ternura
de uma criança!

Puro sol matinal
entre a verdura.
Levo a manhã pela mão,
orvalho sobre a secura."

João José Cochofel