segunda-feira, 30 de julho de 2018

Aún e Pavana Impura

*


Teve um tempo em que minhas únicas paixões eram a pobreza e a chuva.


Agora sinto a pureza dos limites e minha paixão não existiria se dissesse seu nome.


*


Lembro do frio do amanhecer, os círculos dos insetos sobre os copos imóveis, a possibilidade de um abismo cheio de luz sob as janelas abertas para a ventilação da enfermidade, o odor triste da soda cáustica.


*


Alguém entrou na memória branca, na imobilidade do coração.


Vejo uma luz debaixo da neblina e a doçura do erro me faz cerrar os olhos.


É a ebriedade da melancolia; como aproximar o rosto de uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte.


*
Não tenho medo nem esperança. Em um hotel fora do destino, vejo uma praia negra e, distante, as grandes pálpebras de uma cidade cuja dor não me concerne.


Venho do metileno e do amor; tive frio sob os tubos da morte.


Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.


*


Eras sábio e covarde, estás ferido entre as mulheres úmidas, teu pensamento é apenas lembrança da ira.


Vejo as rosas temíveis.


Ah caminhante, ah confusão de pálpebras.


*


Pousa teus lábios nas cânulas como faz o deus que chora em teus armários, o que fala entre unhas amarelas; silvo do sofrimento nas cânulas e, na pureza das horas vazias, lembras da zaragatoa de teu pai, a solidão das pombas extraviadas na eternidade.


*


Lençol negro na misericórdia:
tua língua em um idioma ensanguentado.


Lençol ainda na substância inferma,
a que chora em tua boca e na minha
e, atravessando docemente feridas,
ata meus ossos a teus ossos humanos.


Não morras mais em mim, sal de minha língua.


Dá-me a mão para entrar na neve.


*


Ame todas as perdas.


Ainda retumba o rouxinol no jardim invisível.


*




Todas as árvores puseram-se a gemer dentro de meu espírito ao lembrar de tuas calcinhas na penumbra, a luz debaixo de tua pele, tuas pétalas viventes.


Atravessando aniversários, às vezes viajam as pombas ébrias.


Venha desnuda tua misericórdia, ah pomba mortal, filha do campo


*


Nossos corpos se penetram com cada vez mais tristeza, mas eu amo essa púrpura desolada.


Ah a flor negra dos dormitórios, ah os comprimidos do amanhecer.


*


Veio tua língua; está em minha boca
como uma fruta na melancolia.


Tem piedade em minha boca: suga, lambe,
meu amor, a sombra.


*


Na umidade me amas


e eras azul em teus mamilos. Falas


suavemente em meus lábios e regressas


à tua prisão na melancolia.


*


Teus cabelos embranquecem entre minhas mãos e, como águas silenciosas, nos abandonam as lembranças. Sinto a frieza da existência mas teu odor se espalha pelos quartos e tua lascívia vive em meu coração e entra meu pensamento em tuas feridas.

*

Antonio Gamoneda
(Lengua y herida(

. Préface en prose

"Falo a vocês, homens das antípodas,
falo de homem a homem,
com o pouco que em mim permanece do homem,
com o pouco de voz que me resta na garganta,
meu sangue está nas estradas, possa, possa ele
não gritar vingança!
A caça é certa, as bestas estão cercadas,
deixe-me falar com essas mesmas palavras
que tínhamos em comum -
pouco restam inteligíveis!

Virá um dia, é certo, da sede saciada,
estaremos além da lembrança, a morte
terá terminado o trabalho do ódio,
serei um buquê de urtigas aos seus pés,
- então, bem, saibam que eu tinha um rosto
como vocês. Uma boca que suplicava, como vocês.

Quando poeira, ou mesmo um sonho, entrava
no olho, esse olho chorava um pouco de sal.
E quando um mau espinho arranhava minha pele,
daí saía um sangue tão vermelho como o seu!
É certo, como vocês era cruel, tinha
sede de ternura, de poder,
de ouro, de prazer e de dor.
Como vocês eu era ruim e angustiado
sólido na paz, ébrio na vitória,
e titubeante, desvairado à hora da derrota!

Sim, eu era um homem como os outros homens,
nutrido de pão, de sonho, de desespero. E sim,
amei, chorei, odiei, sofri,
comprei flores e nem sempre
paguei meu aluguel. Domingo ia ao campo
pescar, sob o olhar de Deus, peixes irreais,
me banhava no rio
que cantava nos juncos e comia fritas
de noite. Depois, depois, ia me deitar
fadigado, o coração exausto e cheio de solidão,
pleno de piedade de mim, pleno de piedade do homem,
procurando, procurando em vão sobre um ventre de mulher
essa paz impossível que nós tínhamos perdido
outrora, num grande pomar onde florescia,
no centro, a árvore da vida...

Li como todos vocês os jornais, todos os livros,
e nada compreendi no mundo
e nada compreendi no homem,
ainda que com frequência chegava a afirmar
o contrário. E quando a morte, a morte veio, talvez
pretendi saber o que era ela mas, verdade,
posso lhes dizer nesta hora, ela entrou toda em meus olhos atônitos,
atônitos por tão pouco compreender
- vocês compreenderam melhor do que eu?

E todavia não!
eu não era um homem como vocês.
Vocês não nasceram nas ruas,
ninguém jogou no esgoto seus pequenos
como gatos ainda sem visão,
vocês não erraram de cidade em cidade
perseguidos pelos polícias,
vocês não conheceram os desastres da aurora,
os vagões de bestas
e o soluço amargo da humilhação,
acusados de um delito que vocês não cometeram,
de uma morte ainda sem cadáver,
mudando de nome e de rosto,
para não carregar um nome vaiado
um rosto que tinha servido a todo mundo
de escarrador!

Um dia virá, sem dúvida, quando o poema lido
se encontrará diante dos seus olhos. Ele não pede
nada! Esqueçam-no, esqueçam-no! É
só um grito, que não se pode colocar em um poema
perfeito, tenho então tempo de terminá-lo?
Mas quando vocês esmagarem esse buquê de urtigas
que tinha sido eu, em um outro século,
em uma história a vocês expirada,
lembrem-se apenas que eu era inocente
e que, assim como vocês, mortais naquele dia,
tivera, eu também, um rosto marcado
pela cólera, pela piedade e alegria,

um rosto de homem, simplesmente."

Benjamin Fondane
(L'Exode)

Gritam...

[ Gritam ... ]


Gritam diante dos muros calcinados.


Vêem o perfil das navalhas, vêem
o círculo do sol, a cirurgia
do animal repleto de sombra.


                              Sibilam
nas fístulas brancas.


[ Acreditei... ]



Acreditei em tanta coisa. Durante muito tempo
nevou sem esperança.


Havia mães que enlouqueciam ao amanhecer: ouço
os seus gritos amarelos.


Ainda neva. Creio na desaparição.
Creio na ira.


[ vêm ... ]


Vêm até aos signos
as sombras torturadas.


Penso no dia em que os cavalos aprenderão a chorar.


[ Olho.. ]


Olho para a minha nudez. Contemplo
a aparição das feridas brancas.


Envolto em mortalhas,
bebo a doçura e a sombra
das águas femininas.


IV


Corpos à beira
das acéquias frias


amortalhados
na luz


[ Encontrei... ]


Encontrei mercúrio nas pupilas,
lágrimas nas madeiras, luz
na parede dos moribundos


[ O meu rosto... ]


O meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.


Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente
nos suicidas; está criando a velhice:


ontem e hoje já são o mesmo dia no meu coração.


[ Como se... ]

Como se pousasses no meu coração e houvesse luz dentro das
minha veias e enlouquecesse suavemente; tudo é verdadeiro na
tua claridade:


pousaste no meu coração,


há luz dentro das minha veias,


enlouqueci suavemente.


[ Sobre o tanque... ]


Sobre o tanque
as pombas giram em torno da tua cabeça.


Quando as suas asas roçam os teus cabelos, inclino-me
e vejo a tua claridade na água


e eu estou na tua claridade e não me reconheço:


estou coroado de pombas


dentro da água. Em ti.


[ Dormes ... ]


Dormes sob a pele da tua mãe e os seus sonhos penetram os
teus sonhos.Vais acordar na mesma confusão luminosa.


Ainda não sabes quem és; estás indecisa entre a tua mãe e
um terramoto vivente.


[ alguém entrou... ]


Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
do coração.


Vejo uma luz debaixo do nevoeiro e a doçura do engano
faz-me fechar os olhos.


É a ebriedade da melancolia: como se inclinasse o rosto
sobre uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte.


[ os mananciais ... ]


Os mananciais falam na noite, falam nos ímanes do
silêncio.


Sinto a suavidade das palavras esquecidas.


[ O teu cabelo... ]


O teu cabelo nas suas mãos; arde nas mãos do vigilante
da neve.


São as cevadas, a sesta das serpentes e o teu cabelo de
outrora.


Abre os teus olhos para que eu veja as cevadas brancas:
a tua cabeça nas mãos do vigilante da neve.



Deus e a sua máscara. Ouves os insectos que se alimentam
na tua alma


e , de repente, uma árvore clama, e a língua do
esquecimento arde


e tudo acaba em transparência, em formas cuja verdade
é inconcebível


até que as espumas queimam o coração de homens
desconhecidos e os cavalos falam de todo aquele sangue,
daquele ar extinto nos pátios de Espanha,


daquela terra sem descanso,


daquele esquecimento cheio de sangue.


António Gamoneda

(Denúncia do verão)

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Se Eu Agora Inventasse o Mundo

"Se eu agora inventasse o mundo
criaria a luz da manhã já explicada
sem o luto que pesa
na sombra dos homens
- conspiração da noite
com as pedras.

Luz que o cheiro das ervas da madrugada
aproxima os mortos do silêncio
com esqueletos de asas
- conluio com o sol
para estarem mais presentes
no tacto da pele da manhã,
mil mãos a afogarem a paisagem,
bafo de flores donde cai
o enlace das sementes...

Abro a janela
O mundo cheira tão bem a trevos ausentes!

Bons dias, mortos. Bons dias, Pai."

José Gomes Ferreira
(Elegia Fria com Lírio)
s Inventados)