[ Gritam ... ]
Gritam diante dos muros calcinados.
Vêem o perfil das navalhas, vêem
o círculo do sol, a cirurgia
do animal repleto de sombra.
Sibilam
nas fístulas brancas.
[ Acreditei... ]
Acreditei em tanta coisa. Durante muito tempo
nevou sem esperança.
Havia mães que enlouqueciam ao amanhecer: ouço
os seus gritos amarelos.
Ainda neva. Creio na desaparição.
Creio na ira.
[ vêm ... ]
Vêm até aos signos
as sombras torturadas.
Penso no dia em que os cavalos aprenderão a chorar.
[ Olho.. ]
Olho para a minha nudez. Contemplo
a aparição das feridas brancas.
Envolto em mortalhas,
bebo a doçura e a sombra
das águas femininas.
IV
Corpos à beira
das acéquias frias
amortalhados
na luz
[ Encontrei... ]
Encontrei mercúrio nas pupilas,
lágrimas nas madeiras, luz
na parede dos moribundos
[ O meu rosto... ]
O meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.
Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente
nos suicidas; está criando a velhice:
ontem e hoje já são o mesmo dia no meu coração.
[ Como se... ]
Como se pousasses no meu coração e houvesse luz dentro das
minha veias e enlouquecesse suavemente; tudo é verdadeiro na
tua claridade:
pousaste no meu coração,
há luz dentro das minha veias,
enlouqueci suavemente.
[ Sobre o tanque... ]
Sobre o tanque
as pombas giram em torno da tua cabeça.
Quando as suas asas roçam os teus cabelos, inclino-me
e vejo a tua claridade na água
e eu estou na tua claridade e não me reconheço:
estou coroado de pombas
dentro da água. Em ti.
[ Dormes ... ]
Dormes sob a pele da tua mãe e os seus sonhos penetram os
teus sonhos.Vais acordar na mesma confusão luminosa.
Ainda não sabes quem és; estás indecisa entre a tua mãe e
um terramoto vivente.
[ alguém entrou... ]
Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
do coração.
Vejo uma luz debaixo do nevoeiro e a doçura do engano
faz-me fechar os olhos.
É a ebriedade da melancolia: como se inclinasse o rosto
sobre uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte.
[ os mananciais ... ]
Os mananciais falam na noite, falam nos ímanes do
silêncio.
Sinto a suavidade das palavras esquecidas.
[ O teu cabelo... ]
O teu cabelo nas suas mãos; arde nas mãos do vigilante
da neve.
São as cevadas, a sesta das serpentes e o teu cabelo de
outrora.
Abre os teus olhos para que eu veja as cevadas brancas:
a tua cabeça nas mãos do vigilante da neve.
Deus e a sua máscara. Ouves os insectos que se alimentam
na tua alma
e , de repente, uma árvore clama, e a língua do
esquecimento arde
e tudo acaba em transparência, em formas cuja verdade
é inconcebível
até que as espumas queimam o coração de homens
desconhecidos e os cavalos falam de todo aquele sangue,
daquele ar extinto nos pátios de Espanha,
daquela terra sem descanso,
daquele esquecimento cheio de sangue.
António Gamoneda
(Denúncia do verão)
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