segunda-feira, 30 de julho de 2018

Gritam...

[ Gritam ... ]


Gritam diante dos muros calcinados.


Vêem o perfil das navalhas, vêem
o círculo do sol, a cirurgia
do animal repleto de sombra.


                              Sibilam
nas fístulas brancas.


[ Acreditei... ]



Acreditei em tanta coisa. Durante muito tempo
nevou sem esperança.


Havia mães que enlouqueciam ao amanhecer: ouço
os seus gritos amarelos.


Ainda neva. Creio na desaparição.
Creio na ira.


[ vêm ... ]


Vêm até aos signos
as sombras torturadas.


Penso no dia em que os cavalos aprenderão a chorar.


[ Olho.. ]


Olho para a minha nudez. Contemplo
a aparição das feridas brancas.


Envolto em mortalhas,
bebo a doçura e a sombra
das águas femininas.


IV


Corpos à beira
das acéquias frias


amortalhados
na luz


[ Encontrei... ]


Encontrei mercúrio nas pupilas,
lágrimas nas madeiras, luz
na parede dos moribundos


[ O meu rosto... ]


O meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.


Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente
nos suicidas; está criando a velhice:


ontem e hoje já são o mesmo dia no meu coração.


[ Como se... ]

Como se pousasses no meu coração e houvesse luz dentro das
minha veias e enlouquecesse suavemente; tudo é verdadeiro na
tua claridade:


pousaste no meu coração,


há luz dentro das minha veias,


enlouqueci suavemente.


[ Sobre o tanque... ]


Sobre o tanque
as pombas giram em torno da tua cabeça.


Quando as suas asas roçam os teus cabelos, inclino-me
e vejo a tua claridade na água


e eu estou na tua claridade e não me reconheço:


estou coroado de pombas


dentro da água. Em ti.


[ Dormes ... ]


Dormes sob a pele da tua mãe e os seus sonhos penetram os
teus sonhos.Vais acordar na mesma confusão luminosa.


Ainda não sabes quem és; estás indecisa entre a tua mãe e
um terramoto vivente.


[ alguém entrou... ]


Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
do coração.


Vejo uma luz debaixo do nevoeiro e a doçura do engano
faz-me fechar os olhos.


É a ebriedade da melancolia: como se inclinasse o rosto
sobre uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte.


[ os mananciais ... ]


Os mananciais falam na noite, falam nos ímanes do
silêncio.


Sinto a suavidade das palavras esquecidas.


[ O teu cabelo... ]


O teu cabelo nas suas mãos; arde nas mãos do vigilante
da neve.


São as cevadas, a sesta das serpentes e o teu cabelo de
outrora.


Abre os teus olhos para que eu veja as cevadas brancas:
a tua cabeça nas mãos do vigilante da neve.



Deus e a sua máscara. Ouves os insectos que se alimentam
na tua alma


e , de repente, uma árvore clama, e a língua do
esquecimento arde


e tudo acaba em transparência, em formas cuja verdade
é inconcebível


até que as espumas queimam o coração de homens
desconhecidos e os cavalos falam de todo aquele sangue,
daquele ar extinto nos pátios de Espanha,


daquela terra sem descanso,


daquele esquecimento cheio de sangue.


António Gamoneda

(Denúncia do verão)

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