terça-feira, 31 de março de 2015

Vento que Passa

"A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida."

Sophia de Mello Breyner Andresen

Folhas

"Era uma folha pousada
no cotovelo do vento;
e pairava, deslumbrada,
entre morte e movimento.

Era uma folha: lembrava,
de tão frágil, o momento
em que a vida ficava
escrava do teu juramento.

Era uma folha: mais nada.
Antes fosse esquecimento!"

David Mourão-Ferreira

Tempo

"Tempo — definição da angústia.

Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!"

Miguel Torga

Abbas Kiarostami


segunda-feira, 30 de março de 2015

Firmeza

"Sem frases de desânimo,
Nem complicações de alma,
Que o teu corpo agora fale,
Presente e seguro do que vale.
Pedra em que a vida se alicerça,
Argamassa e nervo,
Pega-lhe como um senhor
E nunca como um servo.

Não seja o travor das lágrimas
Capaz de embargar-te a voz;
Que a boca a sorrir não mate
Nos lábios o brado de combate.

Olha que a vida nos acena
Para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
Que o espelho da vida nos escuta"

João José Cachofel

Rendição

"Vem, camarada, vem
render-me neste sonho de beleza!
Vem olhar doutro modo a natureza
e cantá-la também

Ergue o teu coração como ninguém;
Fala doutro luar, doutra pureza;
Tens outra humanidade, outra certeza:
Leva a chama da vida mais além!

Até onde podia, caminhei.
Vi a lama da terra que pisei,
e cobri-a de versos e de espanto.

Mas, se o facho é maior na tua mão,
vem camarada irmão,
erguer sobre os meus versos o teu canto."

Miguel Torga

O Relógio

"Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Uma vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade

que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente."

João Cabral Melo Neto

Dorothe Lange - White Angel Bread Line 1932


domingo, 29 de março de 2015

Porque é que Este Sonho Absurdo

"Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida."

José Gomes Ferreira

Vigília

"Paralelamente sigo dois caminhos
Abstrato na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor mundo
Está por descobrir. Não seque a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado de oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens noturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona de água
E precipitam asas na esteira de luz.
Da vida nada senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras."

Ruy Cinatti

Dorothea Lange Zollie Lyon North Carolina 1939


sábado, 28 de março de 2015

O Jardim Negro

"É noite. A imensa
palavra é silêncio...
Há no arvoredo
um grave mistério...
Dormem os rumores,
a cor já morreu.
A fonte está louca,
mudo está o eco,

Recordas-te?... Em vão
quisemos sabê-lo...
Que estranho! Que escuro!
Crispa-me inda os nervos
passando nesta hora
somente a lembrança,
como se me houvesse
roçado um momento
a asa peluda
de horrível morcego!...
Vem, amada! Inclina
tua fronte em meu peito;
cerremos os olhos;
não oiçamos, silêncio...
Como dois meninos
que tremem de medo!

A lua aparece,
as nuvens rompendo...
A lua e a estátua
dão um grande beijo."

Manuel Machado (trad José Bento)

Arte Poética

"Que o verso seja como uma chave
Que abra mil portas.
Uma folha cai; algo passa voando;
Quanto fitem os olhos criado seja,
E a alma de quem ouve fique tremendo.

Inventa mundos novos e cultiva a palavra;
O adjetivo, quando não dá vida, mata.

Estamos no ciclo dos nervos.
O músculo pende,
Como lembrança, nos museus;
Mas nem por isso temos menos força:
O vigor verdadeiro
Reside na cabeça.

Por que cantais a rosa, ó Poetas!
Fazei-a florescer no poema.

Somente para nós
Vivem as coisas sob o sol.

O Poeta é um pequeno deus."

Vicente Huidobro (trad A Braga Horta)

Morris Engel


sexta-feira, 27 de março de 2015

A Seiva Oculta

"Quantas vezes estremeço
e quantas vezes nasço
Quantas vezes desfaleço
e quantas vezes renasço

Julgo-me o fim desisto e sofro tudo negro
caem-me os braços magros ao longo dos pensamentos
canto a morte e o mistério e os requintes eternos

Mas logo uma energia insuspeitada vem dos longes
de mim mesmo
e aquece humanamente o coração
à beira de parar

Julgam-te morto e afinal,
é apenas o passo atrás que dás
para avançar

Milhões de forças claras sempre alerta
milhões de vozes fortes sempre à espreita
milhões de risos brancos sempre à espera
sob a capa lodosa dos aspectos da hora enegrecida

Maior que os deuses e que a sombra dos deuses
maior que o medo dos deuses
Homem
o teu destino é modelar os montes e soprar as nuvens
mudar o curso dos rios e o coração dos homens
para a vida

Quantas vezes estremeces
e quantas vezes nasces
Quantas vezes desfaleces
e quantas vezes renasces"

Mário Dionísio

Breve

"Breve
o tão que foste
o pudor de sê-lo.

Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.

Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.

Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou."

João José Cochofel

Eva Besnyo - Gypsies 1931


quinta-feira, 26 de março de 2015

Do Caminho...

"Oh diz-me, noite amiga, amada velha,
que me trazes o retábulo de meus sonhos
sempre deserto e desolado, e só
com meu fantasma dentro,
minha pobre sombra triste
sobre a estepe e sob o sol de fogo,
ou sonhando amarguras
nas vozes de todos os mistérios,
diz-me, se sabes, velha amada, diz-me
se são minhas as lágrimas que verto.
E respondeu-me a noite:
Nunca me revelaste teu segredo.
Não soube nunca, amado,
se eras tu esse fantasma do teu sonho
nem descobri se era sua voz a tua
ou era a voz de um histrião grotesco.
Disse eu à noite: Amada mentirosa,
tu sabes meu segredo;
tu viste a funda gruta
onde fabrica seu cristal meu sonho,
e sabes que minhas lágrimas são minhas,
e sabes minha dor, minha dor velha.
Oh! Eu não sei, amado, disse a noite,
eu não sei teu segredo,
ainda que tenha visto vaguear esse que chamas
desolado fantasma, por teu sonho.
Debruço-me sobre as almas, quando choram
e escuto a sua reza,
humilde e solitária,
a que chamas um salmo verdadeiro;
mas nas profundas abóbadas da alma
não sei se o pranto é uma voz ou um eco.
Para escutar a queixa de teus lábios
busquei-te no teu sonho,
e vi-te ali a vaguear num conturbado
labirinto de espelhos."

António Machado (trad José Bento)

Elogio da Sombra

"A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou."

Jorge Luis Borges

Izis Bidermanas


quarta-feira, 25 de março de 2015

Poema do Homem Só

"Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se,
é nosso, de mais ninguém."

António Gedeão

Tentativa de Solidão

"Por meus lados adormecidos, sempre atrás de uma claridade
desci até olhar-me frente a frente.
Escrevo as tristezas com minha velha flauta de sombras
enquanto nos copos de vinho bebo meus diversos rostos.
Sem chorar despojando-me de tantos estigmas mortais
aguardo a alma que fugitiva vem do seu passado
em busca de uma fonte adormecida para descer para a noite.
Quero estar sozinho em meu grande espectro, meus olhares desertos,
meus cantos doem-me porque não findam em seu próprio delírio,
mal reluzo neles, mal vou escorrendo
como o orvalho desce dos olhos das sombras.
Quero ser meu próprio testemunho, a realidade de meu signo,
mas, - que povoado imenso galopa, respira, sofre?
O peito de raiz perturbado está com substâncias alheias.
Vacila esta veia que entra à minha frente vinda do crepúsculo,
tão vasta como o passado de fogo de uma estrela,
deixa-me seus sinais de luz mas seu esconjuro não consegue
que esta fronte asile também nós malignos.
Ah, a alma volte a fugir com os pés gelados do susto,
no meu interior com cilício estou para devolver ao dia."

Humberto Díaz Casanueva (trad José Bento)

Eis-nos aqui

"Eis-nos aqui, sentados à lareira
Do desespero.
O borralho ideal vai-se apagando,
Enquanto o vento da realidade
Sopra lá fora.
É esta a nossa hora
De amor
Ou de traição?
Porque fechamos todas as portas
Do coração,
Entanguidos de frio e de terror?
Se o temporal entrasse,
Talvez a labareda se ateasse
E nos desse calor ..."

Miguel Torga

Alfred Eisenstaedt - Sophia Loren


terça-feira, 24 de março de 2015

Carpe Diem

"Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio --- nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso."

Nuno Júdice

O irrecuperável

"O irrecuperável
Recuperado ei-lo aqui sorrindo
Com a boca torcida mas feliz
Com os braços esmagados mas feliz

O que não volta eis volta
Por ignoradas mãos
Numa hora esquecida
Entre as horas marcadas

Possivel o recomeço
Possivel o sobressalto
Possivel o sonho solto
Possivel um mundo novo
Possivel o impossivel

Outro é o destino do homem"

Mário Dionísio

Pedro Luis Raota


segunda-feira, 23 de março de 2015

Perplexidade

"Hesito no caminho.
Ninguém segue este rumo...
É noutra direcção
Que o vento leva o fumo
Das paixões...
Chegar, sei que não chego,
De nenhuma maneira;
Mas queria ao menos ir no lírico sossego
De quem não se enganou na estrada verdadeira.

E não vou.
Cada vez mais sozinho
Na solidão,
Duvido da certeza dos meus passos.
Vejo a sede ancestral da multidão
Voltar costas às fontes que pressinto,
E fico na mortal indecisão
De afirmar ou negar o cego instinto
Que me serve de guia e de bordão."

Miguel Torga

Fraternidade

"Fraternidade
de débeis sentimentos inexactos,
cada qual com a sua verdade,
que só a imaginamos
para destruir
o sonho injusto dos factos.
Mas não me digam que vai continuar a desistência,
este eterno sempre da repetição da mesma coisa,
este terror medíocre de sentirmos debaixo dos pés
a impossível Ponte
que nunca poisa
nem poisará
em nenhum horizonte."

José Gomes Ferreira

Ira H. Latour


Não, Não Queremos Cantar

"(Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos. Recuso-me a ter mais de vinte anos.)

Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos...

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas...

...Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros."

José Gomes Ferreira

domingo, 22 de março de 2015

Arte Poética

"Entre tantos ofícios exerço este que não é meu,

como um amo implacável
obriga-me a trabalhar de dia, de noite,
com dor, com amor,
sob a chuva, na catástrofe,
quando se abrem os braços da ternura ou da alma,
quando a enfermidade afunda as mãos.

A este ofício obrigam-me as dores alheias,
as lágrimas, os lenços saudadores,
as promessas em meio ao outono ou ao fogo,
os beijos de encontro, os beijos de adeus,
tudo me obriga a trabalhar com as palavras, com o sangue.

Nunca fui o dono de minhas cinzas, meus versos,
rostos obscuros escrevem-nos como atirar contra a morte."

Juan Gelman

Abbas Kiarostami


O Enterro de um Amigo

"Jogaram-lhe a terra numa tarde horrível
do mês de julho, sob o sol de fogo.

A um passo da sepultura aberta
havia rosas de pétalas apodrecidas,
entre gerânios de áspera fragrância
e flor rubra. 0 céu
puro e azul. Corria
um ar forte e seco.
Suspenso por cordas grossas,
os dois coveiros
fizeram descer pesadamente
o caixão ao fundo da fossa.

E, ao cair; soou com um baque duro,
solene, no silêncio.

Um baque de caixão na terra é algo
perfeitamente sério.

Sobre a caixa negra quebravam-se
os pesados grãos poeirentos.

0 ar erguia
da funda fossa o sopro embranquecido.

E tu, já sem sombra, dorme e repousa.
Longa paz a teus ossos.

Definitivamente,
dorme um sono tranquilo e verdadeiro."

Antonio Machado (trad Sebastião Uchoa Leite)

sábado, 21 de março de 2015

Acordai!

"Acordai!
Acordai, homens que dormis
A embalar a dor
Dos silêncios vis!
Vinde, no clamor
Das almas viris,
Arrancar a flor
Que dorme na raíz!

Acordai!
Acordai, raios e tufões
Que dormis no ar
E nas multidões!
Vinde incendiar
De astros e canções
As pedras e o mar,
O mundo e os corações...

Acordai!
Acendei, de almas e de sóis,
Este mar sem cais,
Nem luz de faróis!
E acordai, depois
Das lutas finais,
Os nossos heróis
Que dormem nos covais.

ACORDAI!"

José Gomes Ferreira

Confissão

"Bem que eu não saiba história, ou muito pouca, sou
o autor destas páginas.

Tudo me aconteceu desde o princípio.
Sou o protagonista,
a vitima, o culpado e o carrasco.

Sou o que olha e o que actua.
As idades descansaram em mim.
Os dias foram o meu alimento.
As ideias, minhas asas,
meus punhais.

Pelo vazio de minhas mãos passou
o rio das armas.

Meus olhos são os fornos em que ardeu
a criação inteira.

Meu canto é o silêncio.

Homem, mulher, criança, ancião,
cada gesto meu treme nas estrelas
atravessando o tempo irrepetível

Eu sou. Não busquem outro,
não torturem outro,
não amem outro.

Não tenho maneira de escapar."

Cintio Vitier (trad José Bento)

Robert Capa


Terra Humana

"É inútil desistir.
Por detrás das muralhas da vontade
Mora o desejo, a força que as derruba.
Deixa que nasça, que avolume e suba
Esta maré de seiva e de ternura!
A grandeza do homem, criatura
Que cresce enquanto ama e pode amar,
É saber
Que só depois do gosto de pecar
Lhe vem o gosto de se arrepender."

Miguel Torga

sexta-feira, 20 de março de 2015

Hora

"Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta — por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.

Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar."

Sophia de Mello Breyner Andresen

Vento que passas

"Vento que passas, leva-me contigo.
Sou poeira também, folha de outono.
Rês tresmalhada que não quer abrigo
No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me, e livre deixa-me cair
No deserto de todas as lembranças,
Onde eu possa dormir
Como no limbo dormem as crianças."

Miguel Torga

Andre Kertesz


Primavera

"Florinha campestre,
estou a interrogar-te
deitado no chão
bem junto a teu lado.

Que dizem os faunos
por entre as abelhas
e os cucos de Junho?

Precisam dizer
ou basta que passem
para haver primavera?"

João José Cochofel

quinta-feira, 19 de março de 2015

Encontro

"Que vens contar-me

se não sei ouvir senão o silêncio?

Estou parado no mundo.

Só sei escutar de longe

antigamente ou lá para o futuro.

É bem certo que existo:

chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga

se não sei nada e desaprendo?

A minha paz é ignorar.

Aprendo a não saber:

que a ciência aprenda comigo

já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo

que fica no alto das montanhas

e não desce à cidade

e sobe às nuvens que andam à procura de forma

antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça

se me agrada não ter horas a toda a hora?

A preguiça do céu entrou comigo

e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas

se este é o meu auge?!

Eu tive a dita de me terem roubado tudo

menos a minha torre de marfim.

Jamais os invasores levaram consigo as nossas

torres de marfim.

Levaram-me o orgulho todo

deixaram-me a memória envenenada

e intacta a torre de marfim.

Só não sei que faça da porta da torre

que dá para donde vim."


Almada Negrei
ros

Amiúde

"No vale dos afectos
ninguém está seguro:
mingua a lembrança
Esquece-se o rosto,
Retorna-se ao eu,
Os lábios secam, as palavras dormem, os sonhos dispersam-se a
presença ausenta-se, há o lago de que não se vê o fundo

E apenas as pequenas ilusões
-um café, o cigarro, a limonada-

imitam dois corações unidos...


Raul de Carvalho

Maurizio Polese


quarta-feira, 18 de março de 2015

E a Vida Foi, e é Assim, e não Melhora

"E a Vida foi, e é assim, e não melhora. 
Esforço inútil. Tudo é ilusão. 
Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora 
Com uma taça, ou um punhal na mão! 

Mas a Arte, o Lar, um filho, António? Embora! 
Quimeras, sonhos, bolas de sabão. 
E a tortura do Além e quem lá mora! 
Isso é, talvez, minha única aflição. 

Toda a dor pode suportar-se, toda! 
Mesmo a da noiva morta em plena boda, 
Que por mortalha leva... essa que traz. 

Mas uma não: é a dor do pensamento! 
Ai quem me dera entrar nesse convento 
Que há além da Morte e que se chama A Paz!" 

António Nobre

Pára-me de Repente o Pensamento

"Pára-me de repente o pensamento 
Como que de repente refreado 
Na doida correria em que levado 
Ia em busca da paz do esquecimento. 

Pára surpreso, escrutador, atento, 
Como pára um cavalo alucinado 
Ante um abismo súbito rasgado. 
Pára e fica, e demora-se um momento. 

Pára e fica, na doida correria. 
Pára à beira do abismo, se demora. 
E mergulha na noite escura e fria. 

Um olhar de aço, que essa noite explora. 
Mas a espora da dor seu flanco estria, 
E ele galga e prossegue sob a espora..."

Ângelo de Lima

Alin Ciortea


terça-feira, 17 de março de 2015

Poesia Fácil

"Paz não procuro, guerra não suporto,
Tranquilo e só vou pelo mundo, e cheio
De cantos sufocados. Como anseio
Silentes névoas de um imenso porto!

Um porto a transbordar de velas leves
Quase a partir pelo horizonte azul
Em doce ondulação, enquanto exul
Perpassa o vento em seus acordes breves.

Acordes tais que o vento em si transporta
Longínquos sobre o mar desconhecido.
Eu sonho. A vida é triste. Estou sozinho.

Oh quando, quando a ardente madrugada
Em que a minha alma acordará no sol,
No eterno sol, fremente e libertada!"


Dino Campana (trad Jorge de Sena)

Canção da Guerra

"Aos fracos e aos covardes
não lhes darei lugar
dentro dos meus poemas.
Covarde já eu sou.
Fraco, já o sou demais,
e se entre fracos for
me perderei também.

Quero é gente animosa
que olhe de frente a Vida,
que faça medo à Morte.
Com esses quero ir,
a ver se me convenço
de que também sou forte.
Quero vencer os medos...
Vencer-me — que sou poço
de estúpidos terrores,
de feminis fraquezas.
Rir-me das sombras,
rir-me das velhas ondas
bravas, rir-me do meu temor
do que há-de acontecer.

Venham comigo os fortes...
Façam-me ter vergonha
das minhas covardias.
E de seus actos façam
(seus actos destemidos)
chicotes p’rós meus nervos.
Ganhe o meu sangue a cor
das tardes das batalhas.
E eu vá — rasgue as cortinas
que velam o Porvir.
Vá — jovem, confiado,
cumprindo o meu destino
de não ficar parado."

Sebastião da Gama

Henri Cartier Bresson


Poema das Coisas

"Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam.
O estar ali, o ser de certo modo,
o saber-se como é, onde é que está, e como,
o aguardar sem pressa, e atender-nos
da forma necessária

Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias,
esperam as coisas que o desespero as busque.

Abre-se a porta e o próprio ar nos fala.
As cortinas de rede, exactamente aquelas,
a cadeira onde a memória está sentada,
a mesa, o copo, a chávena, o relógio,
o móvel onde alguém permanece encostado
sem volume e sem tempo,
nós próprios, quando os olhos indignados
nas pálpebras se encobrem.

Põe-se a pedra na mão, e a pedra pesa,
pesa connosco, forma um corpo inteiro.
Fecha-se a mão, e a mão toma-lhe a forma,
conhece a pedra, entende-lhe o feitio,
sente-a macia ou áspera, e sabe em que lugares.
Abre-se a mão, e a mesma pedra avulta.

Se fosse o amor dos homens
quando se abrisse a mão já lá não estava."

António Gedeão

segunda-feira, 16 de março de 2015

Sonho Poderoso

"Qual é a glória da vida, agora
que não há glória nenhuma
senão a empobrecida realidade?
Acaso conhecer que o desengano
não te arrancou esse desejo fundo
de viver mais?

A glória da vida foi acreditar
que existia o eterno;
ou talvez fosse a glória da vida
aquele poder simples
de criar, com o claro pensamento
a fiel eternidade.
A glória da vida, e o seu fracasso."

Francisco Brines (trad José Bento)

Gérard Castello Lopes


Alguém Entrou na Memória Branca

"Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
do coração.

Vejo uma luz debaixo da névoa e a doçura do erro
faz-me fechar os olhos.

É a ebriedade da melancolia; como aproximar
o rosto de uma rosa doente, indecisa entre o perfume e
a morte"

Antonio Gamoneda

Teias de Aranha Penduradas da Razão

"Teias de aranha penduradas da razão
Numa paisagem de cinza absorta;
Já passou o furacão do amor,
Já não resta pássaro algum.

Tampouco folha alguma,
Todas vão longe, como gotas de água
De um mar quando seca,
Quando já não há lágrimas suficientes,
Porque alguém, cruel como um dia de sol na primavera,
Com apenas sua presença dividiu em dois um corpo.

Agora cabe recolher os restos de prudência,
Embora sempre algum nos falte;
Recolher a vida vazia
E caminhar esperando que lentamente se encha,
Se é possível, outra vez, como antes,
De sonhos desconhecidos e desejos invisíveis.

Tu não sabes nada disso,
Tu estás lá, cruel como o dia;
O dia, essa luz eu abraça bem apertado este triste muro,
Um muro, não entendes?,
Um muro diante do qual estou só."

Luis Cernuda

Grandeza do Homem

"Somos a grande ilha do silêncio de deus
Chovam as estações soprem os ventos
jamais hão de passar das margens
Caia mesmo uma bota cardada
no grande reduto de deus e não conseguirá
desvanecer a primitiva pegada
É esta a grande humildade a pequena
e pobre grandeza do homem"

Ruy Belo

Mitch Dobrowner


Pensar em Ti

"Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir."

António Gedeão

domingo, 15 de março de 2015

Todos Vocês Parecem Felizes...

"...e sorriem, às vezes, quando falam.
E até dizem uns aos outros
palavras
de amor. Mas
amam-se
de dois em dois
para
odiar de mil
em mil. E guardam
toneladas de asco
por cada
milímetro de felicidade.
E parecem-nada
mais que parecem-felizes,
e falam
com o fim de ocultar essa amargura
inevitável, e quantas
vezes não o conseguem, como
não posso ocultá-la
por mais tempo: esta
desesperante, estéril, longa
cega desolação por qualquer coisa
que- não sei por onde-lentamente me arrasta."

Angél González (trad José Bento)

Elliott Erwitt


Lição

 "Oiço todos os dias,
De manhãzinha,
Um bonito poema
Cantado por um melro
Madrugador.
Um poema de amor
Singelo e desprendido,
Que me deixa no ouvido
Envergonhado
A lição virginal
Do natural,
Que é sempre o mesmo, e sempre variado"


Miguel Torga

sábado, 14 de março de 2015

Palavras

"Palavras, atirei-as
Como quem joga pedras, lança flores.
Abriram fendas nas areias,
Suscitaram carícias e furores.

Sobre mim recaíram
Pesada de multíplices sentidos.
Tenho os lábios que um dia as proferiram
E os dedos que as gravaram — já feridos.
Tintas de sangue as restituo aos ventos,
Prestidigitador que sou de sons, palavras.
Dá-lhes novos alentos,
Fogo sonoro que em mim lavras!

Errantes lá pra solidões imensas
Com asas no seu peso, à recaída,
Me tragam, ágeis, densas,
A resposta final que me é devida."

José Régio

Elliott Erwitt


Epigrama

"A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.

Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.

Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.

Dai-me, ó loucos, a vossa razão
- esses remos de subir o tempo
até a fonte de um deus obsceno e nu."

Nuno Júdice

sexta-feira, 13 de março de 2015

Fala do Homem Nascido

"Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.

Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.

Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.

Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar."

António Gedeão

Alin Ciortea


… A Palavra…

"Se eu soubesse a palavra,
a que subjaz aos milhões das que já disse,
a que às vezes se me anuncia num súbito silêncio interior,
a que se inscreve entre as estrelas contempladas pela noite,
a que estremece no fundo de uma angústia sem razão,
a que sinto na presença oblíqua de alguém que não está,
a que assoma ao olhar de uma criança que pela primeira vez interrogou,
a que inaudível se entreouve numa praia deserta no começo do Outono,
a que está antes de uma grande Lua nascer,
a que está atrás de uma porta entreaberta onde não há ninguém,
a que está no olhar de um cão que nos fita a compreender,
a que está numa erva de um caminho onde ninguém passa,
a que está num astro morto onde ninguém foi,
a que está numa pedra quando a olho a sós,
a que está numa cisterna quando me debruço à sua borda,
a que está numa manhã quando ainda nem as aves acordaram,
a que está entre as palavras e não foi nunca uma palavra,
a que está no último olhar de um moribundo, e a vida e o que nela foi fica a uma distância infinita,
a que está no olhar de um cego quando nos fita e resvala por nós,

– se eu soubesse a palavra,
a única, a última,
e pudesse depois ficar em silêncio para sempre…"


Vergílio Ferreira

quinta-feira, 12 de março de 2015

Bola de Cristal

"A praça, o coreto, o quiosque,
as primeiras leituras, os primeiros
versos
e aquelas paixões sem fim…
Todo um mundo submerso,
com suas vozes, seus passos, seus silêncios
- ai que saudade de mim!
Deixo-te, pobre menino, aí sozinho…
Que bom que nunca me viste
como te estou vendo agora
- e é melhor que seja assim…
Deixo-te
com os teus sonhos de outrora, os teus livros queridos
e aquelas paixões sem fim!
e a praça…o coreto…o quiosque
onde compravas revistas…
Sonha, menino triste…
Sonha…
- só o teu sonho é que existe."

Mário Quintana

Emmanuel Smague


Aniversário

"Mãe:
Que visita tão pura que me fizeste
Neste dia!
Era a tua memória que sorria
Sobre o meu berço.
Nu e pequeno como me deixaste,
Ia chorar de medo e de abandono.
Então vieste, e outra vez cantaste,
Até que veio o sono."

Miguel Torga

quarta-feira, 11 de março de 2015

Resgate

"Não sou isto nem aquilo
É o meu modo de viver
É, às vezes, tão tranquilo
Que nem chega a dar prazer...
Todavia, onde apareço,
Logo a paz desaparece
E a guerra que não mereço
Dá princípio à minha prece.
És alegre? Vês-me triste?
Por que não te vais embora?
Quem é triste é porque é triste.
E quem chora é porque chora.
Tenho tudo o que não tens
Tenho a névoa por remate.
Sou da raça desses cães
Em que toda a gente bate.
Só a idade com o tempo
Há-de vir tornar-me forte.
A uns, basta-lhes o vento...
Aos Poetas, basta a morte."

Pedro Homem de Melo

Merle Oberon


Areia

XXXII

"Sei lá cantar
a ilusão
dos meus problemas
- sem algemas
no chão.

Sei lá cantar
o que há em mim de sombra mais secreta
sem sentir o peso do planeta
no meu bandolin.

Já não sou eu que canto
- mas o espanto
do homem em mim."

José Gomes Ferreira

terça-feira, 10 de março de 2015

Dizem os Sábios

"Dizem os sábios que já nada ignoram
Que alma, é um mito!...
Eles que há muito, em vão, dos céus exploram
O almo infinito...
Eles, que nunca achavam no ente humano
Mais que esta face
De ser finito, orgânico, o gusano
Que morre e nasce,
Fundam-se na razão.
E a razão erra!...

Quem da lagarta a rastejar na terra
Pode supor,
Sonhar sequer, que um dia há-de nascer
A borboleta, aquela alada flor
Matiz dos céus?
Sábios, achai em vão o pode ser
Saber... só Deus.

O homem rasteja, semelhante ao verme
Por que não há-de a paz da sepultura
- Quanto labor sob a aparente calma!
Servir d'abrigo àquele ser inerme,
De que há-de um dia após tarefa oscura
Surgir vivaz, alada e flor, a Alma."

Ângelo de Lima

Alfred Eisenstaedt - Sophia Loren - 1961


A mão no Arado

"Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tuido isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente."

Ruy Belo

segunda-feira, 9 de março de 2015

Pedra Filosofal

"Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."

António Gedeão

Helmut Newton - Catherine Deneuve Paris 1976


Café Orfeu

"Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.
Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.
Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.
E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém(eu provavelmente)
nunca tivesse existido."

Manuel António Pina

domingo, 8 de março de 2015

Biografia

"Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isso, para começar.

Extraia a raiz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isso, para continuar.

Parece-lhe decente que um engenheiro faça versos?
A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isso, para viver.

Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto.

Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Ai, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos.
E descansar: morrer."

Gabriel Celaya

Gérard Castello Lopes


Ilusões da Vida

"Quem passou pela vida em brancas nuvens
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem, não foi homem.
Só passou pela vida... não viveu."


Francisco Octaviano

sábado, 7 de março de 2015

Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!

"Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!
Porque não vens de olhos enxutos
e não despes as mãos
de mágoas e de lutos!

Poque hás-de vir semimorta,
com ar macerado e de bruxedo,
e não despes os ritos, o cansaço,
e as lágrimas e os mitos e o medo!

Porque não vens natural
Como um corpo sadio que se entrega,
e não destranças os cabelos,
e não nimbas de luz a tua treva!

Poque hás-de vir com a cor da morte
- se a morte já temos nós!
Porque adormeces os gestos,
porque entristeces os versos,
e nos quebras os membros e a voz!

Porque é que vens adorada
por uma longa procissão de velas,
se eu estou à tua espera em cada estrada,
nu, inteiramente nu,
sem mistérios, sem luas e sem estrelas!

Ó noite eterna e velada,
senhora da tristeza, sê alegria!
Vem de outra maneira ou vai-te embora,
e deixa romper o dia!"

Eugénio de Andrade

Ferdinando Scianna


Senhor

"Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos

Foram talvez os anjos revoltados.
Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido

E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto

Por muito que eu te chame e te persiga."

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 6 de março de 2015

Soneto quase inédito

"Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São Bento
E o Decreto da fome é publicado.

Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.

E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,

Também faz o pequeno “sacrifício”
De trinta contos – só! – por seu ofício
Receber, a bem dele… e da nação."

José Régio

Gordon Parks


Ó pastor que choras

"Ó pastor que choras
o teu rebanho onde está?

-Deita as mágoas fora,
carneiros é o que mais há.

Uns de finos modos,
outros vis por desprazer...
Mas carneiros todos
com carne de obedecer.

Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.

Vai pintar os frutos,
as amoras, os rosais...
Vai pintar de luto,

as papoilas dos trigais."

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 5 de março de 2015

Poema do Homem-Rã

"Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.

Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.

Sob o luminoso feixe
correm de um lado para outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.

Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?

Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu."

António Gedeão

Jacques Henri Lartigue


Bernardo é quase uma árvore

"Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho;
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios – e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três
Fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
Incompletude?)"

Manuel de Barros

quarta-feira, 4 de março de 2015

Confiança

"O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova..."

Miguel Torga

Edouard Boubat


Everness

"Só uma coisa há. É o esquecimento.
Deus, que salva o metal, salva a escoria
E cifra na sua profética memória
as luas que serão e que hão sido.

Já tudo está. Os mil reflexos,
Que entre os dois crepúsculos do dia
Teu rosto foi deixando nos espelhos
e os que irá deixando ainda.

E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Não têm fim seus árduos corredores

E as portas se fecham a teu passo,
Só do outro lado do ocaso
Verás os Arquétipos e Esplendores."

Jorge Luis Borges

terça-feira, 3 de março de 2015

Grito Claro

"De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro"

António Ramos Rosa

Dorothea Lange Zollie Lyon North Carolina 1939


Com Palavras

"Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.
Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.
As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?
Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.
Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar..."

Égito Gonçalves

segunda-feira, 2 de março de 2015

Liberdade

"Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome

Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome

Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome

Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome

Nas maravilhas das noites
No pão branco da alvorada
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome

Nos meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome

Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome

Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome

Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome

Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome

Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome

Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome

No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome

Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome

No trampolim desta porta
Nos objectos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome

Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome

Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome

Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome

Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome

Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome

E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar

Liberdade"

Paul Éluard

Bill Brandt London -1955


To Helena

"Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente 
A maneira mais triste de se estar contente 
a de estar mais sozinho em meio de mais gente 
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente 
Emotiva atitude de quem age friamente 
inalterável forma de se ser sempre diferente 
maneira mais complexa de viver mais simplesmente 
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente 
de estar num sítio tanto mais se mais ausente 
e mais ausente estar se mais presente 
de mais perto se estar se mais distante 
de sentir mais o frio em tempo quente 
O modo mais saudável de se estar doente 
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente 
de mentir muito verdadeiramente 
de dizer a verdade falsamente 
de se mostrar profundo superficialmente 
de ser-se o mais real sendo aparente 
de menos agredir mais agressivamente 
de ser-se singular se mais corrente 
e mais contraditório quanto mais coerente 
A via enviesada para ir-se em frente 
a treda actuação de quem actua lealmente 
e é tão impassível como comovente 
O modo mais precário de ser mais permanente 
de tentar tanto mais quanto menos se tente 
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente 
de estar mais no passado se mais no presente 
de não se ter ninguém e ter em cada homem um parente 
de ser tão insensível como quem mais sente 
de melhor se curvar se altivamente 
de perder a cabeça mas serenamente 
de tudo perdoar e todos justiçar dente 
por dente de tanto desistir e de ser tão constante 
de articular melhor sendo menos fluente 
e fazer maior mal quando se está mais inocente 
É sob aspecto frágil revelar-se resistente 
é para interessar-se ser indiferente 
Quando helena recusa é que consente 
se tão pouco perdoa é por ser indulgente 
baixa os olhos se quer ser insolente 
Ninguém é tão inconscientemente consciente 
tão inconsequentemente consequente 
Se em tantos dons abunda é por ser indigente 
e só convence assim por não ser muito convincente 
e melhor fundamenta o mais insubsistente 
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente 
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente" 

Ruy Belo