domingo, 29 de novembro de 2015

Estranhas Aventuras da Infância

"Era um caminho tão pequenino
Que nem sabia aonde ia,
Por entre uns morros se perdia
Que ele pensava que eram montanhas...

Enquanto a tarde, lenta, caía,
Aflitamente o procuramos.
Sozinho assim, aonde iria?
Porém, deixamos para um outro dia...

Perdido e só, nós o deixamos!

E quando, enfim, ali voltamos
Já nada havia, só ervas más...
Tão vasto e triste sentiste o mundo
Que te achegaste, desamparada...

E foi bem juntos que regressamos,
Ombro com ombro, a mão na mão,
Enquanto, lenta, caía a tarde
E nos espiava a bruxa negra...

E nos seguia a bruxa negra
Que hoje se chama Solidão!"

Mario Quintana
"Baú de Espantos"

sábado, 28 de novembro de 2015

Orfeu Rebelde

"Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento. 

Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura. 

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar a Musa
Se o canto
É de terror ou de beleza."

Miguel Torga
"Orfeu Rebelde"

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Arte poética

"Fitar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.

No dia ou no ano perceber um símbolo
dos dias de um homem e ainda de seus anos,
transformar o ultraje desses anos
em música, em rumor e em símbolo,

na morte ver o sonho, ver no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes certo rosto
contempla-nos do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, sem prodígios.

Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável."

Jorge Luis Borges
"O fazedor"

terça-feira, 24 de novembro de 2015

O Auto-Retrato

"No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…

e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!"

Mario Quintana

domingo, 22 de novembro de 2015

Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (…)
Parece meu velho pai – que já morreu! (…)
Nosso olhar duro interroga:
“O que fizeste de mim?” Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga… Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste…"

Mario Quintana

Antologia

"A vida
Com cada coisa em seu lugar.
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
Os corpos se entendem mas as almas não.
A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Vou-me embora p’ra Pasárgada!
Aqui eu não sou feliz.
Quero esquecer tudo:
— A dor de ser homem...
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.

Quero descansar
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
Na vida inteira que podia ter sido e não foi.

Quero descansar.
Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.
(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)

Quando a indesejada das gentes chegar
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar."

Manuel Bandeira
"Estrela da tarde"

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O olhar

"Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida."

Manoel de Barros
"Poemas rupestres"

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A nossa Canção de Roda

"A nossa canção de roda
Tinha nada e tinha tudo
Como a voz dos passarinhos

- Mas que será que dizia?

A nossa canção de roda
Era boba como a lua.
Mas a roda dispersou-se
Cada qual perdeu seu par...
Agora,
Nossos fantasmas meninos
Talvez a cantem na lua...

Talvez que junto a algum leito
A morte a esteja a cantar
Como que nana um filhinho...

A nossa canção de roda
Tinha nada e tinha tudo:
Era
Uma girândola de vozes
Chispando
Mais lindas do que as estrelas
Era uma fogueira acesa
Para enganar o medo, o grande medo
Que a Noite sentia
Da sua própria escuridão."

Mario Quintana
"Baú de Espantos"

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Irmãos Humanos

"Irmãos humanos que depois de mim vivereis,
eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,
fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,
porque nestas idades já não nunca,
nem leituras embrumadas,
nem crenças, nem política das formas, nem poemas no
                                                              futuro, nem
visitas extraterrestres de mulheres
exorbitantemente
nuas, cruas, sexuais, luminosas,
só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,
é como trabalhar: stanca,
lavorare stanca,
queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e
                                                                    das rosas,
e só tínhamos que perder a alma,
hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,
enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!
livros, je les ai lus tous, e como de costume a carne é
                                                              insondável,
estou mais pobre do que ao comêço,
e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,
meia volta, e já era,
irmãos futuros do génio de Villon e do meu género baixo,
não peço piedade, apenas peço:
não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,
inclitamente vergonhosa,
que em testamento vos deixou esta montanha de merda:
o mundo como vontade e representação que afinal é como
                                                                               era,
como há-de ser: alta,
alta montanha de merda - trepai por ela acima até à
                                                             vertigem,
merda eminentíssima:
daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,
cada qual obrando a sua própria magia:
merda que há-de medrar melhor na memória do mundo"

Herberto Helder
"Servidões"

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Visita

"Fui ver o mar.
Homem de pólo a pólo, vou
De vez em quando olhá-lo, enraizar
Em água este Marão que sou.

Da penedia triste
Pus-me o olhar aquele fundo
Dentro do qual existe
O coração do mundo.

E vi, horas a fio,
A sua angústia ser
Uma espécie de rio
Que não sabe correr."

Miguel Torga
"Poesia Completa"

domingo, 15 de novembro de 2015

Chove...

"Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama."

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Arte do Tempo

"O tempo permanece
Apanhado entre os livros.
Por este prodígios de apreensão,
Heraclito continua a banhar-se
No mesmo rio,
Na mesma página.
Tu continuarás para sempre
Nua no meu poema."

Juan Manuel Roca
"Os Cinco Enterros de Pessoa"
(trad. Nuno Júdice)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Despedida

"Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia."

Eugénio de Andrade
"Ostinato Rigore"

domingo, 8 de novembro de 2015

Imagem

"Este é o poema duma macieira.
Quem quiser lê-lo,
Quem quiser vê-lo,
Venha olhá-lo daqui a tarde inteira.
Floriu assim pela primeira vez.
Deu-lhe um sol de noivado,
E toda a virgindade se desfez
Neste lirismo fecundado.
São dois braços abertos de brancura;
Mas em redor
Não há coisa mais pura,
Nem promessa maior."

Miguel Torga

Bairro Novo

"Na doçura do cair da tarde
vou passando
através das ruas do bairro novo.
Este bairro
é quase desconhecido para mim.
Chego a ter a ilusão
de que habito uma cidade diferente.

O sol bate nas vidraças.

Tudo respira uma alegria suave.

Nas janelas
há meninas debruçadas.
Estão na «idade perigosa»
e sonham.
É tão perigoso sonhar…

Fumo e distraio-me,
uma grande doçura a invadir-me.

Era tão bela a vida
se todos quisessem…"

João José Cochofel
”Instantes”

O Amor que Sinto

 "O amor que sinto 
é um labirinto. 

Nele me perdi 
com o coração 
cheio de ter fome 
do mundo e de ti 
(sabes o teu nome), 
sombra necessária 
de um Sol que não vejo, 
onde cabe o pária, 
a Revolução
 e a Reforma Agrária 
sonho do Alentejo. 
Só assim me pinto 
neste Amor que sinto. 

Amor que me fere, 
chame-se mulher, 
onda de veludo, 
pátria mal-amada, 
chame-se "amar nada" 
chame-se "amar tudo". 

E porque não minto 
sou um labirinto."

José Gomes Ferreira

sábado, 7 de novembro de 2015

Consolo na Praia

"Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te - de vez - nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho."

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Poema

"Cada dia nos dê o nosso pão
e comê-lo nos abra aquela casa
de inteligência e coração
onde sentar-se é mesa rasa

de ver quantos não estão
sentados nessa casa.
E comer se ilumina, e abre-se portão,
ou qualquer coisa de brasa

entra no movimento e na palavra,
como se cada gesto e cada som
fosse uma leitura que se abra

dentro da história de não haver senão
a de estarmos à mesa da palavra,
transparentes, à luz de se partir o pão."

Fernando Echeverría
"Obra Inacabada"

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Poesia

"Estou nu diante da água imóvel.
Deixei minha roupa no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino:

chegar à margem e ter medo da quietude da água."

Antonio Gamoneda
"Livro do Frio"
Trad. José Bento

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Arca de Noé

"Pronto, pronto, eu faço. Dá um trabalhão
mas faço. Corto madeira, arranjo pregos,
gasto o martelo. E o pior também:
correr o mundo a recolher os bichos,
coisas de nada como formigas magras,
e os outros, os grandes, os que mordem
e rugem. E sei lá quantos são!
Em que assados me pões. Tu
gastaste seis dias, e eu nunca mais acabo.
Andar por esse mundo, a pé enxuto ainda,
e escolher os melhores, os de melhor saúde,
que o mundo que tu queres não há-de nascer torto.
Um por um, e por uma, é claro, é aos pares
- o espaço que isso ocupa.

Mas não é ser carpinteiro,
não é ser caminheiro,
não é ser marinheiro o que mais me inquieta.
Nem é poder esquecer
a pulga, o ornitorrinco.
O que mais me inquieta, Senhor,
é não ter a certeza
ou mais ter a certeza de não valer a pena,
é partir já vencido para outro mundo igual."

Pedro Tamen

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Rosa

"A rosa,
a imarscescível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do negro jardim na alta noite,
a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que ressurge da mais ténue
cinza pela arte da alquimia,
a rosa de Ariosto ou a dos Persas,
a que está sempre só,
aquela que é sempre a rosa das rosas,
a jovem flor platónica,
a ardente e cega rosa que não canto,
a rosa inatingível."

Jorge Luis Borges
"Lua Defronte"

domingo, 1 de novembro de 2015

Amor

"Amor, amor, amor, como não amam 
os que de amor o amor de amar não sabem, 
como não amam se de amor não pensam 
os que de amar o amor de amar não gozam. 
Amor, amor, nenhum amor, 
nenhum em vez do sempre amar que o gesto prende 
o olhar ao corpo que perpassa amante 
e não será de amor se outro não for 
que novamente passe como amor que é novo. 
Não se ama o que se tem nem se deseja 
o que não temos nesse amor que amamos, 
mas só amamos quando amamos o acto 
em que de amor o amor de amar se cumpre. 
Amor, amor, nem antes, nem depois, 
amor que não possui, amor que não se dá,
amor que dura apenas sem palavras 
tudo 
o que no sexo é sexo só por si amado. 
Amor de amor de amar de amor tranquilamente 
o oleoso repetir das carnes que se roçam 
até ao instante em que paradas tremem 
de ansioso terminar o amor que recomeça. 
Amor, amor, amor, como não amam 
os que de amar o amor de amar o amor não amam."

Jorge de Sena 
"Peregrinatio ad loca infecta"