sábado, 31 de janeiro de 2015

Homens do futuro

"Homens do futuro:

ouvi, ouvi este poeta ignorado
que cá de longe fechado numa gaveta
no suor do século vinte
rodeado de chamas e de trovões,
vai atirar para o mundo
versos duros e sonâmbulos como eu.
Versos afiados como dentes duma serra em mãos de injúria.
Versos agrestes como azorragues de nojo.
Versos rudes como machados de decepar.
Versos de lâmina contra a Paisagem do mundo
— essa prostituta que parece andar às ordens dos ricos
para adormecer os poetas.

Fora, fora do planeta,
tu, mulher lânguida
de braços verdes
e cantos de pássaros no coração!

Fora, fora as árvores inúteis
— ninfas paradas
para o cio dos faunos
escondidos no vento...

Fora, fora o céu
com nuvens onde não há chuva
mas cores para quadros de exposição!

Fora, fora os poentes
com sangue sem cadáveres
a iludiremos de campos de batalha suspensos!

Fora, fora as rosas vermelhas,
flâmulas de revolta para enterros na primavera
dos revolucionários mortos na cama!

Fora, fora as fontes
com água envenenada da solidão
para adormecer o desespero dos homens!
Fora, fora as heras nos muros
vestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos sempre
de pé!

Fora, fora os rios
a esquecerem-nos as lágrimas dos pobres!

Fora, fora as papoilas,
tão contentes de parecerem o rosto de sangue heróico dum
fantasma ferido!

Fora, fora tudo o que amoleça de afrodites
a teima das nossas garras
curvas de futuro!

Fora! Fora! Fora! Fora!

Deixem-nos o planeta descarnado e áspero
para vermos bem os esqueletos de tudo, até das nuvens.
Deixem-nos um planeta sem vales rumorosos de ecos húmidos
nem mulheres de flores nas planícies estendidas.
Um planeta feito de lágrimas e montes de sucata
com morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas.
E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos!
E cavalos negros nas nuvens de fumo das fábricas!
E flores de punhos cerrados das multidões em alma!
E barracões, e vielas, e vícios, e escravos
a suarem um simulacro de vida
entre bolor, fome, mãos de súplica e cadáveres,
montes de cadáveres, milhões de cadáveres, silêncios de cadáveres
e pedras!

Deixem-nos um planeta sem árvores de estrelas
a nós os poetas que estrangulamos os pássaros
para ouvirmos mais alto o silêncio dos homens
— terríveis, à espera, na sombra do chão
sujo da nossa morte."

José Gomes Ferreira

Sebastião Salgado - Crianças no Exodo


Pirotecnia

"Faço poemas de papel e tinta.
Sou fogueteiro destes artifícios.
Versos...
Girândolas de sonhos e cilícios
Alinhadas no chão
Das laudas de brancura onde me iludo.
Quando a noite é demais,
E o sol de nenhum mundo dá sinais,
Ardem dentro de mim, com lágrimas e tudo."

Miguel Torga

Segredo

"Sei um ninho 
e o ninho tem um ovo; 
e o ovo, redondinho, tem lá dentro um passarinho novo. 

Mas escusas de me tentar:
nem o tiro nem o ensino;
quero ser um bom menino, 
e guardar 
este segredo comigo, 
e ter depois um amigo 
que faça o pino 
a voar." 

Miguel Torga

Emmanuel Smague


Narciso

"Dentro de mim me quis eu ver. Tremia, 
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço... 
Ah, que terrível face e que arcabouço 
Este meu corpo lânguido escondia! 

Ó boca tumular, cerrada e fria, 
Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!... 
Ó lindos olhos sôfregos, de moço, 
Numa fronte a suar melancolia!... 

Assim me desejei nestas imagens. 
Meus poemas requintados e selvagens, 
O meu Desejo os sulca de vermelho: 

Que eu vivo à espera dessa noite estranha, 
Noite de amor em que me goze e tenha, 
... Lá no fundo do poço em que me espelho!" 

José Régio

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Os Penitenciais

"Estes são os restos que me
devolve
o sonho
falta-me uma veia
falta-me uma mão
para espremer um pássaro

Uma asa de pedra grudada
à minha alma
para empunhar minha morte

Saúdo ao sol que me arremessa
como fumaça

Sol
Temos que condescender
Temos que arder às
escuras

Dar-te-ei uma Grande Pálpebra
Dar-me-ás meus olhos brancos
Meu raio que toma meu
peso

Vou inclinado nas
águas
vou vestido de minha pele
vou
e ao ponto de chegar que
sucede?
Quem corta a minha desmemoriada
mão?

Com animais mortos nos
ombros
percorri a solidão
terrena
Vi cinzas
paradas
A terra apenas terra é
lua
A lua é um peito cortado
da terra"

Humberto Díaz Casanueva (Trad. Elga Pérez-Laborde)

Izis Bidermanas in the courtyard paris 1948


O Jogo em que Nos Metemos

"Se me deixassem escolher, eu escolheria
Esta saúde de saber que estamos muito doentes,
esta ventuda de andar tão infelizes.

Se me deixassem escolher, eu escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que ando como impuro.

Se me deixassem escolher, eu escolheria
este amor com que odeio,
esta esperança que como pães desesperados.

Aqui acontece, senhores,
que eu jogo com a morte."

Juan Gelman (trad Antonio Miranda)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Estamos Agora em Paz

"Estamos agora em paz
sabendo simular o esquecimento

sentados

com os olhos no vento
lá de fora atirado para antes
de nós as mãos caídas
nos joelhos mas nada suplicantes
só esvaídas

conformados
com não nos conformarmos

resignados
a esperando não esperarmos

como se tudo fosse um imenso tanto faz"

Mário Dionísio

Dorothea Lange


O Cúmplice

"Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta."

Jorge Luis Borges

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Plateia

"Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste."

Miguel Torga

Eva Besnyö


Menino que Vais na Rua

"Menino que vais na rua,
não cantes nem chores: berra!
Cospe no céu e na lua
e aprende a pisar a terra.
Aprende a pisar o Mundo.
Deixa a lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.
Aprende a pisar a vida.
Deixa a lua às costureiras
- pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.
Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.
Pisa a lua sem remorsos,
estatelada no solo...
Não hesites! Quebra os ossos
dessa criança de colo.
Pisa-a, frio, com coragem,
sem olhos de serenata:
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.
Menino que vais na rua,
não chores, nem cantes: berra!
ou, então, salta p'rá lua
e mija de lá na terra."

José Gomes Ferreira

Paraíso Perdido

"Que vens aqui fazer, espírito velho
de tudo o que foi perdido
e nunca mais achei?

Então...
ainda eu olhava o mundo
com meus olhos de manhãs azuis,
e nos lábios
havia ainda a ternura dos beijos moços
como a relva dos prados.

Foi mais tarde...
que a vida me entardeceu.

(Tardes enevoadas e frias,
abandonadas,
ermas
tristes como eu... )
Foi mais tarde...
que a tal desgraça se deu."

João José Cochofel

Ansel Andams


Os Santos

      "Vê bem, Deus duro!
Tudo que temos seguro,
Ao ar das tuas Miragens
Se lhes desfez nas mãos frágeis.

Tudo o que pode ser tido,
Nem dado nem recebido
      Lhes pôde ser
      — Por o poder.

Quiseram, se é que é vontade
Quererem sem liberdade,
Nada do real perecível:
      Só o impossível.

      Vê bem, Deus louco!
Se os fazes tanto, ou tão pouco,
Não desfaças dos seus fins
Os próprios teus manequins.

Por sede de Fonte Magna
      Se lhes estagna,
Já seca nunca bebida,
Toda a corrente da vida.

Por fome dum pão dum trigo
Só amassado contigo,
Não gostaram pães nenhuns
      Senão jejuns.

Na aposta sempre frustrada
      Do tudo ou nada,
      Vê bem, Deus nu!
Que serão, se o nada és tu?

      Vê bem, Deus mudo!
Jogaram tudo por tudo.
Se não existes, perderam:
Nem sequer foram quem eram.

Vê bem que somos o tudo
Que assim jogaram, Deus mudo!
Consigo nos apostaram
Se perderam, se ganharam...

Por amor, piedade ao menos,
Dos a quem dás teus acenos,
Quebra o que em ti nos resiste.
Paga-nos o que lhes deves: assume existência! Existe."

José Régio

domingo, 25 de janeiro de 2015

Poema

"Um dia saberás que nasceste como eu
com a solidão nos olhos
atados na luz
a gritar no pesadelo de uma ilha.

E a ver a morte crescer lentamente
no teu corpo
- viva."

José Gomes Ferreira

Christine De Granc


Limites

"Quem disse alguma vez: até aqui a sede,
até aqui a água?

Quem disse alguma vez: até aqui o ar,
até aqui o fogo?

Quem disse alguma vez: até aqui o amor,
até aqui o ódio?

Quem disse alguma vez: até aqui o homem,
até aqui não?

Só a esperança tem os joelhos nítidos.
Sangram."

Juan Gelman

sábado, 24 de janeiro de 2015

Amador Sem Coisa Amada

"Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional."


António Gedeão

Henri Cartier Bresson


Princípios

"Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor."

Nuno Júdice

Ferve a Luz

"Ferve a luz debaixo de tuas pupilas.
De um rouxinol absorto na cinza, de suas negras entranhas 

musicais,
surge uma tempestade.
Desprende o pranto às antigas celas, advirto látegos viventes
e o olhar imóvel das bestas,
sua agulha fria em meu coração.
Tudo é presságio. A luz é medula de sombra:
Os insetos vão morrer nas velas do amanhecer.
Assim ardem em mim os significados."

Antonio Gamoneda

Emmanuel Smague


O Amanhã

"Aos vinte anos nos disseram: “Devem
Sacrificar-se pelo Amanhã”.

E sacrificamos a vida no altar
Do deus que nunca chega.

Gostaríamos de encontrar, afinal,
Os velhos mestres daquela época.

Deveriam dizer-nos se, de verdade
Tudo o horror de hoje era o Amanhã."

José Emilio Pacheco

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Oração da Manhã

"Não poder de mão segura separar
a mais límpida essência destas ruas
do sangue velho que lhes mancha as pedras
onde tu vil tristeza continuas

não poder não poder de mão segura
matar de vez o medo e a amargura"

Manuel Alberto Valente

Георг Краузе


Ventos

"Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!..."

Mario Quintana

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Não Desafies

"Não desafies
a alegria.

Quando ela chegue
um instante só
não lhe perguntes
porquê?

Estende as mãos ávidas
para o calor
da cinza fria."

João José Cochofel

Izis Bidermanas


Posição

"Faço o que posso, e posso combater,
Um verso que resiste é um bom soldado.
Quando a noite é maior, o céu deixa-se ver
À pequenina luz dom pirilampo alado.

Move montanhas, abre o mar imenso
A fé que não hesita.
Cai uma gota no terror suspenso,
E o sal das amarguras precipita.

Sozinho na trincheira, vou cantando,
E o inimigo ouve-me de lá...
Ouve, e não sabe quando
O poder do meu fogo acabará."

Miguel Torga

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Litania de Sombra

"Não perguntem nada: nós estamos dentro
Do aro de frio, no frio do muro,
Tão longe, tão longe da feira do Tempo!
Não perguntem nada.
Nós estamos mudos.

Puseram açaimes nas ventas do vento,
Ergueram açudes nas águas do mar...
Não perguntem nada: nós estamos dentro,
Ou fora de tudo.
Não perguntem nada.

Tumulto na estrada? O bicho na concha.
Miséria na casa? O farol na montra.
Não perguntem nada, não perguntem nada:
há sempre gládios
a ríspida sombra.

Não perguntem nada: as razões são longas.
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
E talvez perdidos."

David Mourão Ferreira

Robert Doisneau


Que ando a esconder de mim

"Que ando a esconder de mim
com estes gritos de unhas contra a injustiça do mundo
que só me deixam no coração
tédios de céu afogado?

Que ando a esconder de mim
com esta raiva do amor pelos outros,
a querer arrancar lágrimas de tudo
para as colar nos olhos vazios?

Que ando a esconder de mim
nesta agonia de escurecer a alma
para a confundir com a noite
– bandeira negra de todos os humilhados?

Que ando a esconder de mim
sem coragem de mostrar aos homens
a minha pobre dor,
tão débil e exígua,
que em vão oculto atrás de toda a dor humana
para a tornar maior?"

José Gomes Ferreira

Tu, Piedade

"Tu, piedade,
que vens lá do fundo
da raiz do instinto
e és capaz de incendiar o mundo
para aquecer um faminto.

Tu que me embalas
com a voz rouca
da cólera do amor
que deixa na boca
o frio das balas
e todo o amargor
da outra sede
que só se sufoca
com pus e suor
- e os dedos sangrentos
na cal da parede
dos fuzilamentos.

Tu que me afagas
como quem estrangula
com mãos de bandido...
E beijas as chagas
com lábios de gula
e chumbo derretido.

Tu que só amas
a dor com esgares,
nos gritos das chamas,
nas cordas dos potros,
na cruz do Rabi
- para assim chorares,
através dos outros,
o que dói em ti.

Tu que me levas
de rastos na estrada
ao fundo da rampa
onde só há trevas
- raiz misturada
de estrelas e trampa.

Tu que descobres
toda a secura
de cinzas nos frutos
que há na ternura
de chorar os pobres
de olhos enxutos.

Tu, piedade,
mãe de todas as mães
e de todos os vícios,
que lambes como os cães
os vergões dos cilícios.

Dá-me lágrimas reais
na cara a correr
como se a pele sangrasse...
Dessas que deixam sinais
e fazem doer
por dentro da face.

Dá-me lágrimas geladas
como dedos nos gatilhos
em noites de lobos...
Que eu quero baptizar com elas
todos os filhos
da fúria das cadelas,
dos réprobos e das ladras,
de estupros e de roubos.

Dá-me o ódio frio
que vem lá do fundo
do bafio das prisões
- ódio que há-de salvar o mundo,
num dia de lágrimas nos olhos,
quentes como corações."

José Gomes Ferreira

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Werner Bischof


Aurora boreal

"Tenho quarenta janelas 
nas paredes do meu quarto. 
Sem vidros nem bambinelas 
posso ver através delas 
o mundo em que me reparto. 
Por uma entra a luz do Sol, 
por outra a luz do luar, 
por outra a luz das estrelas 
que andam no céu a rolar. 
Por esta entra a Via Láctea 
como um vapor de algodão, 
por aquela a luz dos homens, 
pela outra a escuridão. 
Pela maior entra o espanto, 
pela menor a certeza, 
pela da frente a beleza 
que inunda de canto a canto. 
Pela quadrada entra a esperança 
de quatro lados iguais, 
quatro arestas, quatro vértices, 
quatro pontos cardeais. 
Pela redonda entra o sonho,
 que as vigias são redondas, 
e o sonho afaga e embala 
à semelhança das ondas. 
Por além entra a tristeza, 
por aquela entra a saudade, 
e o desejo, e a humildade, 
e o silêncio, e a surpresa, 
e o amor dos homens, e o tédio, 
e o medo, e a melancolia, 
e essa fome sem remédio 
a que se chama poesia, 
e a inocência, e a bondade, 
e a dor própria, e a dor alheia, 
e a paixão que se incendeia, 
e a viuvez, e a piedade, 
e o grande pássaro branco, 
e o grande pássaro negro 
que se olham obliquamente, 
arrepiados de medo, 
todos os risos e choros, 
todas as fomes e sedes, 
tudo alonga a sua sombra 
nas minhas quatro paredes. 

Oh janelas do meu quarto, 
quem vos pudesse rasgar! 
Com tanta janela aberta 
falta-me a luz e o ar." 

António Gedeão

domingo, 18 de janeiro de 2015

Não choro...

"A dor não me pertence. 

Vive fora de mim, na natureza, 
livre como a electricidade. 

Carrega os ceus de sombra, 
entra nas plantas, 
desfaz as flores... 

Corre nas veias do ar, 
atrai os abismos, 
curva os pinheiros... 

E em certos momentos de penumbra 
iguala-me à paisagem, 
Surge nos meus olhos 
presa a um passaro a morrer 
no céu indiferente. 

Mas não choro. Não vale a pena! 
A dor não é humana."

José Gomes Ferreira

Eva Besnyö


Senhor

"Senhor se da tua pura justiça 
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo 
É porque alguém te venceu ou desviou 
Em não sei que penumbra os teus caminhos 

Foram talvez os anjos revoltados. 
Muito tempo antes de eu ter vindo 
Já se tinha a tua obra dividido 

E em vão eu busco a tua face antiga 
És sempre um deus que nunca tem um rosto
 
Por muito que eu te chame e te persiga."

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 17 de janeiro de 2015

Secura

"Tarde de primavera.
Como quem é do mundo,
Bebo sol e quimera,
E mergulho as raízes mais no fundo.

Vida!
O tutano da terra - seiva!
A semente aquecida
No carinho da leiva!

O que um ser de dois pés sabe dizer!...
Infelizmente, isto de germinar,
Nem se faz a morrer,
Nem se faz a pensar."

Miguel Torga

André Kertész


Poesias

         LIX


"Todas as noites toca um telefone na Lua.

Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:

Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S.! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
- e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.
Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
- e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.
Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
- e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.

S.O.S! S.O.S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens…
E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!"

José Gomes Ferreira

Madrugada

"Ah! Este poema das madrugadas,
que há tanto tempo enrodilhado
num sem-fim de estados de alma
me obcecava, tirânico,
sem se deixar fixar! ...

Madrugada... e esta solidão crescendo,
esta nostalgia maior, e maior, e maior,
de não se sabe o quê
— nunca se sabe o quê...
que haverá nestas horas sozinhas e geladas,
para assim trazer à tona as indefinidas mágoas,
as saudades e as ânsias sem motivo
— de que não sabemos o motivo?...

Vieram as saudades do tempo de menino
— ou dum paraíso lá não sei onde?
Ah! que fantasmas pesaram sobre os ombros,
que sombras desceram sobre os olhos,
que tristeza maior fez maior o silêncio?
A que vem esse calor distante e absorto,
esse calar, esses modos distraídos?
Meu pobre sonhador! a esta hora
porventura se desvenda a Suprema Inutilidade?
e a definitiva ilusão de tantos gestos?

Interroga, interroga...
vai sonhando,
sem que saibas sequer o caminho que segues
vai, distraído e pensativo,
alheio de hoje,
vivendo já o derradeiro segundo...

Que a madrugada tem o pungir das agonias,
mas alheio, como o fim dum pesadelo..."

Adolfo Casais Monteiro

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Arca-se-me o peito de pregões!

             XIX

"Arca-se-me o peito de pregões!
Como lâminas fulgindo ao sol de Inverno,
quanto me nega a palidez dos dias.
Minhas dores, colhi-as
mondando o campo das esperanças.

- São as de todos
nesta paz de lanças."

João José Cochofel

Andre Kertesz


Pérola solta

"Sem que eu a esperasse,
Rolou aquela lágrima
No frio e na aridez da minha face.
Rolou devagarinho...,
Até à minha boca abriu caminho.
Sede! o que eu tenho é sede!
Recolhi-a nos lábios e bebi-a.
Como numa parede
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou,
Na boca me cantou,
Breve como essa lágrima,
Esta breve elegia."

José Régio

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Tentativa de Solidão

"Por meus lados adormecidos, sempre atrás de uma claridade
desci até olhar-me frente a frente.
Escrevo as tristezas com minha velha flauta de sombras
enquanto nos copos de vinho bebo meus diversos rostos.
Sem chorar despojando-me de tantos estigmas mortais
aguardo a alma que fugitiva vem do seu passado
em busca de uma fonte adormecida para descer para a noite.
Quero estar sozinho em meu grande espectro, meus olhares desertos,
meus cantos doem-me porque não findam em seu próprio delírio,
mal reluzo neles, mal vou escorrendo
como o orvalho desce dos olhos das sombras.
Quero ser meu próprio testemunho, a realidade de meu signo,
mas, - que povoado imenso galopa, respira, sofre?
O peito de raiz perturbado está com substâncias alheias.
Vacila esta veia que entra à minha frente vinda do crepúsculo,
tão vasta como o passado de fogo de uma estrela,
deixa-me seus sinais de luz mas seu esconjuro não consegue
que esta fronte asile também nós malignos.
Ah, a alma volte a fugir com os pés gelados do susto,
no meu interior com cilício estou para devolver ao dia."

Humberto Díaz Casanueva (trad. José Bento)

Poesia

          LII
"Sol!
Porque desenhas com luto
a minha sombra nas pedras?
Pois não vês que já estou farto
deste eterno tropeçar
na noite dos meus passos?"

José Gomes Ferreira

Fan Ho


Vento que Passa

"A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida."

Sophia de Mello Breyner Andresen

Como se Nunca

"É algo mais que o dia o que morre esta tarde?
O vento,
              - que leva ele,
que aromas arrebata?
Desatadas de súbito as folhas das árvores
cegas vão pelo céu.
Pássaros altos atravessam, adiantam-se
à luz que os guia.
               Sombria claridade
será já em outro sítio
- só por um instante –
madrugada.

Com bandeiras de fumo alguém me avisa:

             - Olha bem tudo isto;
isto que passa
não voltará jamais
e é como se não tivesse nunca sido

efémera matéria de tua vida."

Ángel González (trad. José Bento)

Ferdinando Scianna


Dentro em mim solidão levo

"Dentro em mim solidão levo,
Torre de cegas janelas.
Quando meus braços estendo
Abro-lhe as portas de entrada,
Abro caminho alfombrado
A quem quiser visitá-la.
Lembrança pintou os quadros
Que ornamentam suas salas,
Onde alegrias passadas
Com penas de hoje contrastam
Quão juntos ambos estávamos
Quem era o corpo? Quem é
A alma? Que morte amarga
Foi nosso adeus derradeiro!
Agora dentro em mim levo
Alta solidão delgada."

Manuel Altolaguirre (trad. Mário Faustino)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Provérbios e Cantares

                     I

"Nunca persegui a glória
nem conservar na memória
dos homens minha canção;
eu amo os mundos sutis,
ingrávidos e gentis
como bolhas de sabão.
Gosto de vê-los pintar-se
de ouro e de carmim, voar
no céu azul, tremular
subitamente e quebrar-se."

                    XVI

"O homem, por índole, é besta paradoxal,
precisa de lógica esse absurdo animal.
Criou do nada um mundo e, obra terminada,
"Já sei o segredo - se disse -, tudo é nada."

Antonio Machado (trad. Ronald Polito)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Já não é o amor do mundo

"Já não é o amor do mundo
que me impele contra as grades.
Mas esta dor de vergonha
diante das pedras e das árvores
a acusarem-me de ramos estendidos:
«Eh! cobarde dos pequenos minutos
coroados de pétalas de tédio
nega ao menos o teu destino vil
de morrer em vão!»"

José Gomes Ferreira

Cristina Garcia Rodero


Sei Todas as Histórias

"Eu não sei muitas coisas, é verdade.
Apenas falo do que tenho visto.
E já vi:
que o berço do homem o embalam com histórias,
que os gritos de angústia do homem os afogam com histórias,
que o pranto do homem o tapam com histórias,
que os ossos do homem os enterram com histórias,
e que o medo do homem...
inventou todas as histórias.
Sei muito poucas coisas, é verdade,
mas adormeceram-me com todas as histórias...
e sei todas as histórias."

León Felipe (trad. José Bento)

As Dissonâncias

"A minha vida é esta esperança acessória,
esta dor que embala e não promete,
é este estar contente como quem parece
descrer doutra ventura e não se cala.

É este não saber eternamente
assentar em cheio minhas seteiras
e estar eternamente calmo (ou estar escondido),
calando sempre as minhas três maneiras

A minha vida é este erguer de bruma
e-sempre que é preciso-recordar alguém,
já morto, à noite, à cabeceira,

até cair de novo, ao sono e ao sol-posto,
no tempo vão, inerme e obstruído
de sonhar de novo e de qualquer maneira."

João Rui de Sousa

Werner Bischof


Aquela Nuvem

"Aquela nuvem
parece um cavalo…

Ah! Se eu pudesse montá-lo!

Aquela?
Mas já não é um cavalo,
É uma barca à vela.

Não faz mal.
Queria embarcar nela.

Aquela?
Mas já não é um navio,
é uma torre amarela
a vogar no frio
onde encerraram uma donzela.

Não faz mal.
Quero ter asas
para a espreitar da janela.

Vá, lancem-me no mar
donde voam as nuvens
para ir numa delas
tomar mil formas
com sabor a sal
- Labirinto de sombras e de cisnes
No céu de água-sol-vento-luz
concreto e irreal…"

José Gomes Ferreira

Não Dizia Nada

"Não dizia nada,
aproximava apenas um corpo interrogante,
Porque ignora ser o desejo uma pergunta
Cuja resposta não existe,
Uma folha cujo ramo não existe,
Um mundo cujo céu não existe.

A angústia abre caminho entre os ossos,
Remonta pelas veias
Até romper-se na pele,
Provedores de sonho
Feito carne em interrogação volta às nuvens.

Um roce de passagem,
Um olhar fugaz entre as sombras,
Bastam para que parta o corpo em dois,
Ávido de receber em si mesmo
Outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Igual em desenho, iguais em amor, iguais em desejo.

Mesmo sendo apenas uma esperança,
Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe."

Luis Cernuda

domingo, 11 de janeiro de 2015

Ruth Orkin


Bebido o luar

"Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.

Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.

Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver."

Sophia de Mello Breyner Andresen

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!"


José Régio

Narciso Yepes - Marche Irlandaise


Crespúsculo

"É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida."

David Mourão Ferreira

Hora

"Sinto que hoje novamente embarco 
Para as grandes aventuras, 
Passam no ar palavras obscuras 
E o meu desejo canta --- por isso marco 
Nos meus sentidos a imagem desta hora. 

Sonoro e profundo 
Aquele mundo 
Que eu sonhara e perdera 
Espera 
O peso dos meus gestos. 

E dormem mil gestos nos meus dedos. 

Desligadas dos círculos funestos 
Das mentiras alheias, 
Finalmente solitárias, 
As minhas mãos estão cheias 
De expectativa e de segredos 
Como os negros arvoredos 
Que baloiçam na noite murmurando. 

Ao longe por mim oiço chamando 
A voz das coisas que eu sei amar. 

E de novo caminho para o mar." 

Sophia de Mello Breyner Andresen

Alfred Eisenstaedt


Com Palavras

"Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.
Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.
As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?
Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.
Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar..."

Égito Gonçalves

sábado, 10 de janeiro de 2015

Breve

"Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.

Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.

Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.

Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou."

João José Cochofel

Antes que chegue a noite

"Antes que chegue a noite sobre o mar
e atire o vento da nortada
as minhas húmidas cinzas para o nada.
Antes que os gastos gestos se dissolvam,
tal como um sorriso que se transforma em esgar
ou os cansados espasmos de um amor extinto.
Antes, ainda, como este sol sobre as ilhas,
tenaz ponto de luz, cor intensa,
que as minhas palavras desenhem meu fantasma,
salvo e perdido, na pura intensidade da vida."

Juan Luis Panero

Izis Bidermanas


Onomatopeia

"Menino franzino,
Quase pequenino,
Pequenino, triste,
Neste mundo só...,

Menino, desiste
De que tenham dó!

Desiste, menino,
Que o mundo é cretino...
Deixa o teu violino,
Toca o sol-e-dó.

Cada teu suspiro
Cai ao chão no pó...
Canta o tiro-liro
Tiro-liro-ló.

Deixa o teu violino,
Que não te é destino.
Desiste, menino,
De que tenham dó!

Menino franzino,
Triste e pequenino,
Pequenino, triste,
Neste mundo só...,

Menino, desiste!
Toca o sol-e-dó.
Canta o tiro-liro, repipiro-piro,
Canta o repipiro, tiro-liro-ló."

José Régio

O Visitante Noturno

"Enquanto dormes, teu Cuidado espera-te.
Despertas... e ei-lo sentado, ali, aos pés do leito.
mas um dia darás um jeito nisso tudo...
Um dia, não despertas... Nunca mais!
Que fará ele, então, o teu Cuidado,
Da sua odienta fidelidade canina?
Do seu feroz silêncio? Do seu rosto sem cara?"

Mario Quintana

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Fraternidade

"Fraternidade
de débeis sentimentos inexactos,
cada qual com a sua verdade,
que só a imaginamos
para destruir
o sonho injusto dos factos.
Mas não me digam que vai continuar a desistência,
este eterno sempre da repetição da mesma coisa,
este terror medíocre de sentirmos debaixo dos pés
a impossível Ponte
que nunca poisa
nem poisará
em nenhum horizonte."

José Gomes Ferreira

Cristina Garcia Rodero


Este é o tempo

"Este é o tempo
Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam."

Sophia de Mello Breyner

Viagem

"Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar."

Miguel Torga

Robert Lebeck


Poema do Silêncio

"Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome."

José Régio

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Desprezo

"Desprezo era um lugarejo. Acho que lugar
desprezado e mais triste do que abandonado.
Não sei porque os caminhos do mundo me tirou do
Desprezo para este Posto de Gazolina na
estrada que vai para São Paulo. Acho quase um 
milagre. Quando a gente morava no Desprezo
ele já era desprezado. Restavam três casas em 
pé. E três famílias com oito guris que corriam 
pelas estradas já cobertas de mato. Eu era um
dos oito guris. Agora estou aqui botando 
gazolina para os potentados. Naquele tempo
do Desprezo eu queria ser chão, isto ser:
para que em mim as árvores crescessem. Para
que sobre mim as conchas se formassem. Eu 
queria ser chão no tempo do Desprezo para
que sobre mim os rios corressem. Me lembro
que os moradores de Desprezo, incluindo os
oito guris, todos queriam ser aves ou coisas
ou novas pessoas. Isto quer dizer que os
moradores de Desprezo queriam ficar livres
para outros seres. Até ser chão servia como
era meu caso. Ninguém era responsável pelas
preferências dos outros. Nem isso era uma
brincadeira. Podia ser um sonho saído do
Desprezo. Uma senhora de nome Ana Belona queria
ser árvore para ter gorjeios. Ela falou que não
queria mais moer solidão. Tinha um homem com
o olhar sujo de dor que catava o cisco mais 
nobre do lugar para construir outra casa. Não
sei por quê aquele homem com olhar sujo de dor
queria permanecer no Desprezo. Eu não sei
nada sobre as grandes coisas do mundo, mas 
sobre as pequenas eu sei menos."

Manuel de Barros

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Sei Que o Único Canto

"Sei que o único canto,
o único digno dos cantos antigos,
a única poesia,
é a que cala e ainda ama este mundo,
esta solidão que enlouquece e despoja."

Antonio Gamoneda

Charles Gatewood


Ficam as Sombras

"Não. Não podeis levar tudo.
Depois do corpo,
E da alma,
E do nome,
E da terra da própria sepultura,
Fica a memória de uma criatura
Que viveu,
E sofreu,
E cantou,
E nunca se dobrou
À dura tirania que o venceu.

Fica dentro de vós a consciência
De que ali onde o mundo é mais vazio
Havia um homem.
E sabeis que se comem
Os frutos acres da recordação…
Fantasmas invisíveis que atormentam
O sono leve dos que se alimentam
Da liberdade de qualquer irmão."

Miguel Torga

Eu que me aguente comigo

"Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim."

Álvaro de Campos

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Gérard Castello-Lopes


Proponho a minha cabeça atormentada

"Proponho a minha cabeça atormentada
pela sede e pela sepultura. Eu queria
expelir um som de alegria;
mas soo a matéria desolada.

Justifico-me na dor. Não há nada;
não encontro nos meus ossos a cobardia.
Em meu canto inverte-se a agonia;
é um caso de luz incorporada.

Proponho a minha cabeça para se houver
necessidade de suportar um raio.
Não falo apenas por mim. Digo, juro

que a beleza é necessária. Morra
o que deve morrer; o que calo.
Não toques, Deus, meu coração impuro."

Antonio Gamoneda

É tudo tão pequeno esta manhã

"É tudo tão pequeno esta manhã.

As aves acordaram surpreendidas,
a voarem nos meus olhos
curvas fatigadas
de Primavera morta…

As mãos caem-me secas
ao longo do corpo
em folhas recortadas
de árvore de solidão…

As raízes sugam-me nas veias
o sangue da terra
das manhãs de sussurro…

Sim. Hoje só eu existo…

Eu com este remorso de gota de água
que se recusa a cair no mar
─ para se sentir maior
longe da cólera comum da Tempestade."

José Gomes Ferreira

Poeta

"Lembras-te, Mãe

do menino que perdeste
e que ficou...
do menino que ficou
mas que fugiu...?

Anda agora pela vida...

É o poeta dos olhos molhados
do sorriso triste
dos dedos longos...

Anda agora pela vida...

E um dia, Mãe
ele há-de voltar
novamente,
para lhe aqueceres as mãos frias
e chorar com ele as ilusões perdidas.

Entretanto
deixa-o sofrer mais algum tempo..."

João José Cochofel

Robert Frank.


E de Súbito Anoitece

"Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles,
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é frágil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem perseverar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece."

Juan Luis Panero (trad. Joaquim Manuel Magalhães)

domingo, 4 de janeiro de 2015

Folhinha

"Murchou a flor aberta ao sol do tempo.
Assim tinha de ser, neste renovo
Quotidiano,
Outro ano,
Outra flor,
Outro perfume.
O gume
Do cansaço
Vai ceifando,
E o braço
Doutro sonho
Semeando.

É essa a eternidade:
A permanente rendição da vida.
Outro ano,
Outra flor,
Outro perfume,
E o lume
De não sei que ilusão a arder no cume
De não sei que expressão nunca atingida."

Miguel Torga

Hengki Koentjoro

Outro Poema dos Dons

"Graças quero dar ao divino
labirinto dos efeitos e das causas
pela diversidade das criaturas
que formam este singular universo,
pela razão, que não cessará de sonhar
com um plano do labirinto,
pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses,
pelo amor que nos deixa ver os outros
como os vê a divindade,
pelo firme diamante e a água solta,
pela álgebra, palácio de precisos cristais,
pelas místicas moedas de Angel Silésio,
por Schopenhauer
que decifrou talvez o universo,
pelo fulgor do fogo
que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,
pelo acaju, o cedro e o sândalo,
pelo pão e o sal,
pelo mistério da rosa
que prodiga cor e não a vê,
por certas vésperas e dias de 1955,
pelos duros tropeiros que, na planície,
arreiam os animais e a alba,
pela manhã em Montevideu,
pela arte da amizade,
pelo último dia de Sócrates,
pelas palavras que foram ditas num crepúsculo
de uma cruz a outra cruz,
por aquele sonho do Islão que abarcou
mil noites e uma noite,
por aquele outro sonho do inferno,
da torre do fogo que purifica
e das esferas gloriosas,
por Swendenborg,
que conversava com os anjos nas ruas de Londres,
pelos rios secretos e imemoriais
que convergem em mim,
pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,
pela espada e a harpa dos saxões,
pelo mar que um deserto resplandecente
e uma cifra de coisas que não sabemos
e um epitáfio dos vikings,
pela música verbal da Inglaterra,
pela música verbal da Alemanha,
pelo ouro que reluz nos versos,
pelo épico Inverno,
pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,
por Verlaine, inocente como os pássaros,
pelo prisma de cristal e o peso de bronze,
pelas riscas do tigre,
pe1as altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,
pela manhã no Texas,
por aquele sevilhano que redigiu a «Epístola Moral»
e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,
por Séneca e Lucano, de Córdova,
que antes do espanhol escreveram
toda a literatura espanhola,
pelo geométrico e bizarro xadrez,
pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
pelo odor medicinal dos eucaliptos,
pela linguagem, que pode simular a sabedoria,
pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
pelo costume,
que nos repete e nos confirma como um espelho,
pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio,
pela noite, sua treva e sua astronomia,
pelo valor e a felicidade dos outros,
pela pátria, sentida nos jasmins
ou numa velha espada,
por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,
pelo facto de que o poema é inesgotável
e se confunde com a soma das criaturas
e jamais chegará ao último verso
e varia segundo os homens,
por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos
por morrer tão devagar,
pelos minutos que precedem o sonho,
pelo sonho e a morte,
esses dois tesouros ocultos,
pelos íntimos dons que não enumero,
pela música, misteriosa forma do tempo."

Jorge Luís Borges

Vida

"Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.

Ah! se exigirem documentos aí do Outro Lado,
extintas as outras memórias,
só poderei mostrar-lhes as folhas soltas de um álbum de imagens:
aqui uma pedra lisa, ali um cavalo parado
ou
uma
nuvem perdida,
perdida…

Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida!"

Mario Quintana

Quero Voar

"Quero voar
-mas saem da lama
garras de chão
que me prendem os tornozelos.

Quero morrer
-mas descem das nuvens
braços de angústia
que me seguram pelos cabelos.

E assim suspenso
no clamor da tempestade
como um saco de problemas
-tapo os olhos com as lágrimas
para não ver as algemas...

(Mas qualquer balouçar ao vento me parece Liberdade.)"


José Gomes Ferreira

Ansel Andams


Os Dias Íntimos

"Mói música um realejo,
poético de convenção.
Mas é hoje o que agrada
ao meu coração.

Com castanhas assadas,
chuva na imaginação,
e luzes molhadas
no asfalto do chão,

Egoísmo de bicho,
simulado ou não,
mas que bem me sabe
esta solidão.

Ó comedida felicidade,
com teu ópio vão
sobre tanta náusea
passa a tua mão."

João José Cochofel

O Silêncio

"Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas"

Eugénio de Andrade

sábado, 3 de janeiro de 2015

Herbert Maeder, Marselha, 1952


Monólogo de Faroleiro

"Como preencher-te, solidão,
Senão contigo mesma.
Em menino, entre as pobres guaridas da terra,
Quieto num canto escuro,
Procurava em ti, grinalda acesa,
Minhas auroras futuras e furtivos nocturnos,
E em ti os vislumbrava,
Naturais e exactos, também livres e fiéis,
À minha semelhança,
À tua semelhança, eterna solidão.

Depois perdi-me pela terra injusta
Como quem busca amigos ou ignorados amantes;
Diferente do mundo,
Fui luz serena, desenfreado anelo,
E na chuva sombria ou no sol evidente
Queria uma verdade que te atraiçoasse,
Esquecendo em meu anseio
Como as asas fugitivas criam sua própria nuvem.

E ao velar-se a meus olhos
Com nuvens sobre nuvens de outono transbordado
A luz daqueles dias em ti mesma entrevistos,
Neguei-te por bem pouco;
Por amores vulgares, nem certos nem fingidos,
Por calmas amizades de poltrona e aparência,
Por um nome de reduzida cauda num mundo fantasma,
Nauseabundos como os autorizados,
Úteis somente para o elegante salão sussurrado,
Em bocas de mentira e palavras de gelo.

Por ti encontro-me agora o eco da antiga pessoa
Que fui,
Que eu próprio manchei com aquelas traições juvenis;
Por ti encontro-me agora, constelados achados,
Limpos de outro desejo,
O sol, meu deus, a noite rumorosa,
A chuva, a intimidade de sempre,
O bosque e seu hálito pagão,
O mar, o mar, belo como o seu nome;
E sobre todos eles,
Corpo escuro e esbelto,
Encontro-te a ti, ó solidão tão minha,
E dás-me força e debilidade,
Como à ave cansada os braços da pedra.

Debruçado na varanda olho insaciável as ondas,
Oiço suas escuras maldições,
Contemplo seus brancos afagos;
E erguido de um berço vigilante
Sou na noite um diamante que gira a avisar os homens,
Por quem vivo, mesmo quando os não vejo;
E assim, longe deles,
Esquecidos já seus nomes, amo-os em multidões,
Roucas e violentas como o mar, minha morada,
Puras perante a espera de uma revolução ardente
Ou rendidas e dóceis, como o mar sabe ser
Quando chega a hora do repouso que sua força conquista.

Tu, verdade solitária,
Transparente paixão, minha solidão de sempre,
És um imenso abraço;
O sol, o mar,
A escuridão, a estepe,
O homem e seu desejo,
A multidão irada,
- Que são senão tu mesma?
Por ti, minha solidão, procurei-os um dia;
Em ti, minha solidão, amo-os agora."

Luis Cernuda (trad. José Bento)