segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Aurora boreal

"Tenho quarenta janelas 
nas paredes do meu quarto. 
Sem vidros nem bambinelas 
posso ver através delas 
o mundo em que me reparto. 
Por uma entra a luz do Sol, 
por outra a luz do luar, 
por outra a luz das estrelas 
que andam no céu a rolar. 
Por esta entra a Via Láctea 
como um vapor de algodão, 
por aquela a luz dos homens, 
pela outra a escuridão. 
Pela maior entra o espanto, 
pela menor a certeza, 
pela da frente a beleza 
que inunda de canto a canto. 
Pela quadrada entra a esperança 
de quatro lados iguais, 
quatro arestas, quatro vértices, 
quatro pontos cardeais. 
Pela redonda entra o sonho,
 que as vigias são redondas, 
e o sonho afaga e embala 
à semelhança das ondas. 
Por além entra a tristeza, 
por aquela entra a saudade, 
e o desejo, e a humildade, 
e o silêncio, e a surpresa, 
e o amor dos homens, e o tédio, 
e o medo, e a melancolia, 
e essa fome sem remédio 
a que se chama poesia, 
e a inocência, e a bondade, 
e a dor própria, e a dor alheia, 
e a paixão que se incendeia, 
e a viuvez, e a piedade, 
e o grande pássaro branco, 
e o grande pássaro negro 
que se olham obliquamente, 
arrepiados de medo, 
todos os risos e choros, 
todas as fomes e sedes, 
tudo alonga a sua sombra 
nas minhas quatro paredes. 

Oh janelas do meu quarto, 
quem vos pudesse rasgar! 
Com tanta janela aberta 
falta-me a luz e o ar." 

António Gedeão

Nenhum comentário:

Postar um comentário