quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Desprezo

"Desprezo era um lugarejo. Acho que lugar
desprezado e mais triste do que abandonado.
Não sei porque os caminhos do mundo me tirou do
Desprezo para este Posto de Gazolina na
estrada que vai para São Paulo. Acho quase um 
milagre. Quando a gente morava no Desprezo
ele já era desprezado. Restavam três casas em 
pé. E três famílias com oito guris que corriam 
pelas estradas já cobertas de mato. Eu era um
dos oito guris. Agora estou aqui botando 
gazolina para os potentados. Naquele tempo
do Desprezo eu queria ser chão, isto ser:
para que em mim as árvores crescessem. Para
que sobre mim as conchas se formassem. Eu 
queria ser chão no tempo do Desprezo para
que sobre mim os rios corressem. Me lembro
que os moradores de Desprezo, incluindo os
oito guris, todos queriam ser aves ou coisas
ou novas pessoas. Isto quer dizer que os
moradores de Desprezo queriam ficar livres
para outros seres. Até ser chão servia como
era meu caso. Ninguém era responsável pelas
preferências dos outros. Nem isso era uma
brincadeira. Podia ser um sonho saído do
Desprezo. Uma senhora de nome Ana Belona queria
ser árvore para ter gorjeios. Ela falou que não
queria mais moer solidão. Tinha um homem com
o olhar sujo de dor que catava o cisco mais 
nobre do lugar para construir outra casa. Não
sei por quê aquele homem com olhar sujo de dor
queria permanecer no Desprezo. Eu não sei
nada sobre as grandes coisas do mundo, mas 
sobre as pequenas eu sei menos."

Manuel de Barros

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