"O tempo vive, quando os homens, nele,
se esquecem de si mesmos,
ficando, embora, a contemplar o estreme
reduto de estar sendo.
O tempo vive a refrescar a sede
dos animais e do vento,
quando a estrutura estremece
a dura escuridão que, desde dentro,
irrompe. E fica com o uivo agreste
espantando o seu estrondo de silêncio."
Fernando Echevarría
terça-feira, 30 de junho de 2015
Infância
"Coração preto gravado no muro amarelo.
A chuva fina pingando... pingando das árvores...
Um regador de bruços no canteiro.
Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...
Baú de folha-de-flandres da avó no quarto de dormir.
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maçã verde no prato.
Um peixe de azebre morrendo... morrendo, em
dezembro.
E a tarde exibindo os seus
Girassóis, aos bois."
A chuva fina pingando... pingando das árvores...
Um regador de bruços no canteiro.
Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...
Baú de folha-de-flandres da avó no quarto de dormir.
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maçã verde no prato.
Um peixe de azebre morrendo... morrendo, em
dezembro.
E a tarde exibindo os seus
Girassóis, aos bois."
Manuel de Barros
Quando ficas sozinho
"Quando ficas sozinho, és espelho
do que foste:
uma manhã
contemplada da janela encostada
da varanda; alguns passos
harmoniosos que não seguiste
para não derramar teu gozo;
umas quantas palavras
que te modificaram mais que o tempo;
um olhar que se afogou
como luz em tuas veias;
uma viagem que não querias
terminar nunca; tua alma ausente
do que te esperava
ao ficares tão sozinho."
Ángel Crespo
do que foste:
uma manhã
contemplada da janela encostada
da varanda; alguns passos
harmoniosos que não seguiste
para não derramar teu gozo;
umas quantas palavras
que te modificaram mais que o tempo;
um olhar que se afogou
como luz em tuas veias;
uma viagem que não querias
terminar nunca; tua alma ausente
do que te esperava
ao ficares tão sozinho."
Ángel Crespo
quarta-feira, 17 de junho de 2015
Por Vezes, Muito Raramente
"Quando pouco na vida nos consola
do tempo, esse verdugo indiferente,
por vezes, muito raramente, na monotonia da noite,
entre repetidos sonhos, surge uma imagem
que reflecte o desejo que deixamos aí
e um rosto - a sua remota aparência - reconstrói
um intenso instantâneo da felicidade.
Quando tão misterioso privilégio nos chega,
acordar em seguida é viver o inferno:
não aquele jogo grotesco de chamas e demónios,
mas o demónio da luz de novo,
o fogo do primeiro cigarro."
Juan Luis Panero
(trad Joaquim Manuel Magalhães)
do tempo, esse verdugo indiferente,
por vezes, muito raramente, na monotonia da noite,
entre repetidos sonhos, surge uma imagem
que reflecte o desejo que deixamos aí
e um rosto - a sua remota aparência - reconstrói
um intenso instantâneo da felicidade.
Quando tão misterioso privilégio nos chega,
acordar em seguida é viver o inferno:
não aquele jogo grotesco de chamas e demónios,
mas o demónio da luz de novo,
o fogo do primeiro cigarro."
Juan Luis Panero
(trad Joaquim Manuel Magalhães)
A Orfeu
"Das tuas mãos divinas de Poeta
Herdei a lira que não sei tanger;
Por eleição ou maldição secreta,
Tenho uma grade para me prender.
Cercam-me as cordas, de emoção,
Versos de ferro onde me rasgo inteiro.
Mas, do fundo da alma e da prisão,
Obrigado, meu Deus e carcereiro!"
Herdei a lira que não sei tanger;
Por eleição ou maldição secreta,
Tenho uma grade para me prender.
Cercam-me as cordas, de emoção,
Versos de ferro onde me rasgo inteiro.
Mas, do fundo da alma e da prisão,
Obrigado, meu Deus e carcereiro!"
Miguel Torga
terça-feira, 16 de junho de 2015
Espelho
"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."
Mário Quintana
Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
"Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto construem, desfazem ou se construi ou desfaz através deles.
Se empequena!
Não, não se empequena... se transforma em outra coisa —
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino —
Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino.
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas
De todas as vidas, abstractas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar porque é um tudo,
Porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa!
Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstracto
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!
Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
Cárcere de pensar, não há libertação de ti?
Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus!
Nós, irmãos gémeos do Destino em ambos existirmos,
Nós, irmãos gémeos dos Deuses todos, de toda a espécie,
Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.
Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
Porque não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo mistério?
E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses."
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto construem, desfazem ou se construi ou desfaz através deles.
Se empequena!
Não, não se empequena... se transforma em outra coisa —
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino —
Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino.
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas
De todas as vidas, abstractas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar porque é um tudo,
Porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa!
Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstracto
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!
Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
Cárcere de pensar, não há libertação de ti?
Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus!
Nós, irmãos gémeos do Destino em ambos existirmos,
Nós, irmãos gémeos dos Deuses todos, de toda a espécie,
Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.
Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
Porque não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo mistério?
E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses."
Álvaro de Campos
Trespasse
"Quem tiver sonhos, guarde-os bem fechados
— com naftalina — num baú inútil.
Por mim abdico desses vãos cuidados.
Deixai-me ser liricamente fútil!
Estou resolvido. Vou abrir falência.
(Bandeira rubra desfraldada ao vento:
"Hoje, leilão!") Liquida-se a existência
— por retirada para o esquecimento ..."
— com naftalina — num baú inútil.
Por mim abdico desses vãos cuidados.
Deixai-me ser liricamente fútil!
Estou resolvido. Vou abrir falência.
(Bandeira rubra desfraldada ao vento:
"Hoje, leilão!") Liquida-se a existência
— por retirada para o esquecimento ..."
Daniel Filipe
segunda-feira, 15 de junho de 2015
Calmaria
"Mar!
o teu cântico verde-azul
insinuou-se-me no sangue,
salgou-me os lábios.
E o corpo inteiro
ressou-me de ecos silenciosos
esmaecidos em bruma;
os sentidos,
temperados de Sol e água,
espreguiçaram-se indolentes de ritmo.
Rara
esta inteireza de espírito,
quando nem o passado deixou resíduos
nem o futuro espreita..."
João José Cochofel
o teu cântico verde-azul
insinuou-se-me no sangue,
salgou-me os lábios.
E o corpo inteiro
ressou-me de ecos silenciosos
esmaecidos em bruma;
os sentidos,
temperados de Sol e água,
espreguiçaram-se indolentes de ritmo.
Rara
esta inteireza de espírito,
quando nem o passado deixou resíduos
nem o futuro espreita..."
João José Cochofel
Não fiz nada, bem sei, nem o farei
"Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.
Vivemos aos encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono."
Fernando Pessoa
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.
Vivemos aos encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono."
Fernando Pessoa
domingo, 14 de junho de 2015
Estou Perdido
"Profeta de meus fins não duvidava
do mundo que pintou minha fantasia
nos enormes desertos invisíveis.
Reconcentrado e penetrante, só,
mudo, predestinado, esclarecido,
meu profundo isolamento e fundo centro,
meu sonho errante e solidão submersa,
dilatavam-se pelo inexistente,
até que vacilei, até que a dúvida
por dentro escureceu minha cegueira.
Um tacto escuro entre o meu ser e o mundo,
entre as duas trevas, definia
uma ignorada juventude ardente.
Encontra-me na noite. Estou perdido."
Manuel Altolaguirre (trad José Bento)
do mundo que pintou minha fantasia
nos enormes desertos invisíveis.
Reconcentrado e penetrante, só,
mudo, predestinado, esclarecido,
meu profundo isolamento e fundo centro,
meu sonho errante e solidão submersa,
dilatavam-se pelo inexistente,
até que vacilei, até que a dúvida
por dentro escureceu minha cegueira.
Um tacto escuro entre o meu ser e o mundo,
entre as duas trevas, definia
uma ignorada juventude ardente.
Encontra-me na noite. Estou perdido."
Manuel Altolaguirre (trad José Bento)
Os Dias
"Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.
Quando nascia o sol as pessoas viam
e os homens eram crianças para além dos montes.
Era uma planície, grande como convém a todas as planícies
e plana porque tudo estava certo.
Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais às
ervas e às flores.
Tu,
tão perfeita que impossível não seres,
tão erguida como um riso de andorinha,
tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,
e não havia motivos nem razões porque sabíamos tudo.
A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima
e o deitarmo-nos na terra como folhas da mesma planta,
gratos, reduzidos, conscientes.
Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos
vinham sentar-se no rebordo
e riam como nós pequenas gargalhadas.
Eu cantava canções mais belas do que não tendo palavras
e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos, exatamente
como a todos os sons."
Quando nascia o sol as pessoas viam
e os homens eram crianças para além dos montes.
Era uma planície, grande como convém a todas as planícies
e plana porque tudo estava certo.
Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais às
ervas e às flores.
Tu,
tão perfeita que impossível não seres,
tão erguida como um riso de andorinha,
tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,
e não havia motivos nem razões porque sabíamos tudo.
A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima
e o deitarmo-nos na terra como folhas da mesma planta,
gratos, reduzidos, conscientes.
Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos
vinham sentar-se no rebordo
e riam como nós pequenas gargalhadas.
Eu cantava canções mais belas do que não tendo palavras
e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos, exatamente
como a todos os sons."
Pedro Tamen
sábado, 13 de junho de 2015
Do Caminho...
"Oh diz-me, noite amiga, amada velha,
que me trazes o retábulo de meus sonhos
sempre deserto e desolado, e só
com meu fantasma dentro,
minha pobre sombra triste
sobre a estepe e sob o sol de fogo,
ou sonhando amarguras
nas vozes de todos os mistérios,
diz-me, se sabes, velha amada, diz-me
se são minhas as lágrimas que verto.
E respondeu-me a noite:
Nunca me revelaste teu segredo.
Não soube nunca, amado,
se eras tu esse fantasma do teu sonho
nem descobri se era sua voz a tua
ou era a voz de um histrião grotesco.
Disse eu à noite: Amada mentirosa,
tu sabes meu segredo;
tu viste a funda gruta
onde fabrica seu cristal meu sonho,
e sabes que minhas lágrimas são minhas,
e sabes minha dor, minha dor velha.
Oh! Eu não sei, amado, disse a noite,
eu não sei teu segredo,
ainda que tenha visto vaguear esse que chamas
desolado fantasma, por teu sonho.
Debruço-me sobre as almas, quando choram
e escuto a sua reza,
humilde e solitária,
a que chamas um salmo verdadeiro;
mas nas profundas abóbadas da alma
não sei se o pranto é uma voz ou um eco.
Para escutar a queixa de teus lábios
busquei-te no teu sonho,
e vi-te ali a vaguear num conturbado
labirinto de espelhos."
António Machado (trad José Bento)
que me trazes o retábulo de meus sonhos
sempre deserto e desolado, e só
com meu fantasma dentro,
minha pobre sombra triste
sobre a estepe e sob o sol de fogo,
ou sonhando amarguras
nas vozes de todos os mistérios,
diz-me, se sabes, velha amada, diz-me
se são minhas as lágrimas que verto.
E respondeu-me a noite:
Nunca me revelaste teu segredo.
Não soube nunca, amado,
se eras tu esse fantasma do teu sonho
nem descobri se era sua voz a tua
ou era a voz de um histrião grotesco.
Disse eu à noite: Amada mentirosa,
tu sabes meu segredo;
tu viste a funda gruta
onde fabrica seu cristal meu sonho,
e sabes que minhas lágrimas são minhas,
e sabes minha dor, minha dor velha.
Oh! Eu não sei, amado, disse a noite,
eu não sei teu segredo,
ainda que tenha visto vaguear esse que chamas
desolado fantasma, por teu sonho.
Debruço-me sobre as almas, quando choram
e escuto a sua reza,
humilde e solitária,
a que chamas um salmo verdadeiro;
mas nas profundas abóbadas da alma
não sei se o pranto é uma voz ou um eco.
Para escutar a queixa de teus lábios
busquei-te no teu sonho,
e vi-te ali a vaguear num conturbado
labirinto de espelhos."
António Machado (trad José Bento)
Viver à Beira da Morte
"Viver à beira da morte
No gosto de mais um dia,
Nem eu diria
Que tão pouco me conforte.
Mas para quem
Não tem senão esse pouco,
Seria louco
Perder o pouco que tem.
Gozar o que, sem futuro,
Perdura uns breves instantes,
Não era dantes,
Mas hoje, é o bem que procuro.
Mais uma vez brilha o Sol!
E é de prever que à tardinha
Desponte a Lua, vizinha
Do resplendor do arrebol.
Talvez que a noite comprida
Traga outra manhã, depois.
Um dia e outro, são dois.
Não são dois dias a vida?
Nem eu diria
Que tão pouco me conforte:
Viver à beira da morte
No gosto de mais um dia."
No gosto de mais um dia,
Nem eu diria
Que tão pouco me conforte.
Mas para quem
Não tem senão esse pouco,
Seria louco
Perder o pouco que tem.
Gozar o que, sem futuro,
Perdura uns breves instantes,
Não era dantes,
Mas hoje, é o bem que procuro.
Mais uma vez brilha o Sol!
E é de prever que à tardinha
Desponte a Lua, vizinha
Do resplendor do arrebol.
Talvez que a noite comprida
Traga outra manhã, depois.
Um dia e outro, são dois.
Não são dois dias a vida?
Nem eu diria
Que tão pouco me conforte:
Viver à beira da morte
No gosto de mais um dia."
José Régio
Eléctrico
XXXVII
"Ah! Se eu imitasse a alegria das árvores e do vento
que riem sem motivo
Mas não. Ando triste.
Já não me contento em sentir-me vivo…
(E que outro destino existe?)"
"Ah! Se eu imitasse a alegria das árvores e do vento
que riem sem motivo
Mas não. Ando triste.
Já não me contento em sentir-me vivo…
(E que outro destino existe?)"
José Gomes Ferreira
Um Cego
"Não sei qual é a face que me fita
Quando observo a face de algum espelho;
No seu reflexo espreita-me esse velho
Com ira muda, fatigada, aflita.
Lento na sombra, com as mãos exploro
Meus invisíveis traços. O mais belo
Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo
Que é já de cinza ou é ainda de ouro.
Repito que perdi unicamente
A superfície sempre vã das coisas.
O consolo é de Milton e é valente,
Mas eu penso nas letras e nas rosas,
Penso que se pudesse ver a cara
Saberia quem sou na tarde rara."
Jorge Luis Borges
Quando observo a face de algum espelho;
No seu reflexo espreita-me esse velho
Com ira muda, fatigada, aflita.
Lento na sombra, com as mãos exploro
Meus invisíveis traços. O mais belo
Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo
Que é já de cinza ou é ainda de ouro.
Repito que perdi unicamente
A superfície sempre vã das coisas.
O consolo é de Milton e é valente,
Mas eu penso nas letras e nas rosas,
Penso que se pudesse ver a cara
Saberia quem sou na tarde rara."
Jorge Luis Borges
(trad Fernando Pinto do Amaral)
sexta-feira, 12 de junho de 2015
Requiescat
"Direi, pela noite, não ódio que tivesse
Nem detestar vida corpórea e ninhos de manha,
Mas meu alto cansaço, a tristeza de lá
Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha.
Direi --- não "fora!" ao mundo que me cinge
(Outro onde o sei e como chegaria?),
Mas dos anos de ver, pensar durando
Retiro uma moeda de nada,
Fruto do meu suor, e pago o pão que se me deve,
Compro o silêncio que se me deve
Por ter cumprido a palavra,
Trabalhado nas palavras,
E por elas merecido a terra leve."
Vitorino Nemésio
Nem detestar vida corpórea e ninhos de manha,
Mas meu alto cansaço, a tristeza de lá
Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha.
Direi --- não "fora!" ao mundo que me cinge
(Outro onde o sei e como chegaria?),
Mas dos anos de ver, pensar durando
Retiro uma moeda de nada,
Fruto do meu suor, e pago o pão que se me deve,
Compro o silêncio que se me deve
Por ter cumprido a palavra,
Trabalhado nas palavras,
E por elas merecido a terra leve."
Obsessão do Mar Oceano
"Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças nas janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome."
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças nas janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome."
Mário Quintana
quinta-feira, 11 de junho de 2015
Aquela Falsa e Triste Semelhança
"Aquela falsa e triste semelhança
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,
Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
O que passa, ondeando, em torno meu,
Passa (...)
Dormir, despir-me deste mundo ultraje,
Como quem despe um dominó roubado.
Despir a alma postiça como a um traje.
Tenho náusea carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar. E vou,
Anónimo, (...) menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou."
Álvaro de Campos
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,
Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
O que passa, ondeando, em torno meu,
Passa (...)
Dormir, despir-me deste mundo ultraje,
Como quem despe um dominó roubado.
Despir a alma postiça como a um traje.
Tenho náusea carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar. E vou,
Anónimo, (...) menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou."
O Irrecuperável
"O irrecuperável
Recuperado ei-lo aqui sorrindo
Com a boca torcida mas feliz
Com os braços esmagados mas feliz
O que não volta eis volta
Por ignoradas mãos
Numa hora esquecida
Entre as horas marcadas
Possivel o recomeço
Possivel o sobressalto
Possivel o sonho solto
Possivel um mundo novo
Possivel o impossivel
Outro é o destino do homem"
Mário Dionísio
Recuperado ei-lo aqui sorrindo
Com a boca torcida mas feliz
Com os braços esmagados mas feliz
O que não volta eis volta
Por ignoradas mãos
Numa hora esquecida
Entre as horas marcadas
Possivel o recomeço
Possivel o sobressalto
Possivel o sonho solto
Possivel um mundo novo
Possivel o impossivel
Outro é o destino do homem"
Mário Dionísio
quarta-feira, 10 de junho de 2015
Navios de Vento
"Fechei a minha janela
ao vento que vem do largo
que entra pela foz do rio
e declina pela cidade
silvando pelos telhados
que lhe servem de desvio.
No rio sobem navios
que apitam de quando em quando.
Oh mudo pranto fechado,
que se ouve no meu quarto!
Mas o vento força a porta
sublinha-se pelas frinchas
com denodado desígnio
que me fere de malícia.
Abro a janela fecho-a
e recebo-o em minha casa
com honras de visitante,
pé atrás, outro adiante,
como se fosse esperado.
Oh pranto desenganado!
Não converso, não me espanto
com o que o vento sussurra
quando entra de improviso.
O que se ouve no meu quarto
é um anjo apavorado
que me pretende assustar
com uma voz de além-túmulo
ouvida algures, além mar.
Oh lamento recordado
de uma criança a chorar!
Eu vejo cavalos brancos
galopando sobre as nuvens,
as crinas ao ar soltando
como um cardume assustado.
O vento que me percorre
rodopia sem cessar
enche-me o quarto todo
de furtivos sentimentos
difíceis de controlar.
Oh mudo pranto fechado
a sete chaves pelo vento!"
Ruy Cinatti
ao vento que vem do largo
que entra pela foz do rio
e declina pela cidade
silvando pelos telhados
que lhe servem de desvio.
No rio sobem navios
que apitam de quando em quando.
Oh mudo pranto fechado,
que se ouve no meu quarto!
Mas o vento força a porta
sublinha-se pelas frinchas
com denodado desígnio
que me fere de malícia.
Abro a janela fecho-a
e recebo-o em minha casa
com honras de visitante,
pé atrás, outro adiante,
como se fosse esperado.
Oh pranto desenganado!
Não converso, não me espanto
com o que o vento sussurra
quando entra de improviso.
O que se ouve no meu quarto
é um anjo apavorado
que me pretende assustar
com uma voz de além-túmulo
ouvida algures, além mar.
Oh lamento recordado
de uma criança a chorar!
Eu vejo cavalos brancos
galopando sobre as nuvens,
as crinas ao ar soltando
como um cardume assustado.
O vento que me percorre
rodopia sem cessar
enche-me o quarto todo
de furtivos sentimentos
difíceis de controlar.
Oh mudo pranto fechado
a sete chaves pelo vento!"
Poema do Homem Só
"Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nehum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarçe,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém."
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nehum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarçe,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém."
António Gedeão
terça-feira, 9 de junho de 2015
Os Galos de Lurçat
"Num turbilhão de folhas e de sóis
entre nuvens peixes pedras luas estrelas
cantam os galos de Lurçat
Bom dia corações de girassol e astros com cabelos
Bom dia homens com raízes
Pairam na lã os ares
do Loire e do Garona
meiga luz de velhíssimos teares
cheiro a cachos do Beaune
meiga luz dos mil matizes do aroma
da doce terra de França
Entre troncos caídos em clareiras virgens
graves galos garbosos
de esporões floridos
com a manhã nas cristas
Que outras horas são estas
Que outros sítios e olhos? Que mendigos em festa?
Que serenidades imprevistas?
Galos negros e azuis
entre o presente e o futuro
traçam nos túneis absurdos
esguias figuras mudas
Galos verdes e castanhos
rasgam na alma os lanhos
da poeira dos anos
Galos vermelhos brancos amarelos
no ponto robusto de ásperas lãs
soltam clarins nas ruínas ermas dos castelos
de que se erguem amanhãs
Oh universos suspensos de Lurçat nos nevoeiros densos
da doce terra de França
Oh fanfarras desgrenhadas nas auroras dúbias e ousadas
na doce terra de França
Teus galos cantam fúria e eu oiço amor
teus galos cantam dor e luto e noite e eu oiço
esperança"
Mário Dionísio
entre nuvens peixes pedras luas estrelas
cantam os galos de Lurçat
Bom dia corações de girassol e astros com cabelos
Bom dia homens com raízes
Pairam na lã os ares
do Loire e do Garona
meiga luz de velhíssimos teares
cheiro a cachos do Beaune
meiga luz dos mil matizes do aroma
da doce terra de França
Entre troncos caídos em clareiras virgens
graves galos garbosos
de esporões floridos
com a manhã nas cristas
Que outras horas são estas
Que outros sítios e olhos? Que mendigos em festa?
Que serenidades imprevistas?
Galos negros e azuis
entre o presente e o futuro
traçam nos túneis absurdos
esguias figuras mudas
Galos verdes e castanhos
rasgam na alma os lanhos
da poeira dos anos
Galos vermelhos brancos amarelos
no ponto robusto de ásperas lãs
soltam clarins nas ruínas ermas dos castelos
de que se erguem amanhãs
Oh universos suspensos de Lurçat nos nevoeiros densos
da doce terra de França
Oh fanfarras desgrenhadas nas auroras dúbias e ousadas
na doce terra de França
Teus galos cantam fúria e eu oiço amor
teus galos cantam dor e luto e noite e eu oiço
esperança"
Mário Dionísio
Canto Esponjoso
"Bela
esta manhã sem carência de mito,
E mel sorvido sem blasfêmia.
Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.
Umidade de areia adere ao pé.
Engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul
completa
sobre formas constituídas.
Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto."
Carlos Drummond de Andrade
segunda-feira, 8 de junho de 2015
A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade
"A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada."
Fernando Echevarría
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada."
Ah, Abram-me Outra Realidade!
"Ah, abram-me outra realidade!
Quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos
E ter visões por almoço.
Quero encontrar as fadas na rua!
Quero desimaginar-me deste mundo feito com garras,
Desta civilização feita com pregos.
Quero viver como uma bandeira à brisa,
Símbolo de qualquer coisa no alto de uma coisa qualquer!
Depois encerrem-me onde queiram.
Meu coração verdadeiro continuará velando
Pano brasonado a esfinges,
No alto do mastro das visões
Aos quatro ventos do Mistério.
O Norte — o que todos querem
O Sul — o que todos desejam
O Este — de onde tudo vem
O Oeste — aonde tudo finda
— Os quatro ventos do místico ar da civilização
— Os quatro modos de não ter razão, e de entender o mundo"
Álvaro de Campos
Quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos
E ter visões por almoço.
Quero encontrar as fadas na rua!
Quero desimaginar-me deste mundo feito com garras,
Desta civilização feita com pregos.
Quero viver como uma bandeira à brisa,
Símbolo de qualquer coisa no alto de uma coisa qualquer!
Depois encerrem-me onde queiram.
Meu coração verdadeiro continuará velando
Pano brasonado a esfinges,
No alto do mastro das visões
Aos quatro ventos do Mistério.
O Norte — o que todos querem
O Sul — o que todos desejam
O Este — de onde tudo vem
O Oeste — aonde tudo finda
— Os quatro ventos do místico ar da civilização
— Os quatro modos de não ter razão, e de entender o mundo"
domingo, 7 de junho de 2015
Destino
"Acordo como os pássaros cativos,
Com a ária da vida nos ouvidos.
Acordo sem amarras nos sentidos,
Fiéis à sempiterna liberdade...
Nada pôde vencer a lealdade
Que juraram à deusa aventureira.
Nem as grades do sono, nem a severidade
Da noite carcereira.
Acordo e recomeço
O canto interrompido:
O desvairado canto
Da ira irrequieta...
- O canto que o poeta
Se obrigou a cantar
Antes de Ter nascido,
Antes de a sua angústia começar."
Miguel Torga
Com a ária da vida nos ouvidos.
Acordo sem amarras nos sentidos,
Fiéis à sempiterna liberdade...
Nada pôde vencer a lealdade
Que juraram à deusa aventureira.
Nem as grades do sono, nem a severidade
Da noite carcereira.
Acordo e recomeço
O canto interrompido:
O desvairado canto
Da ira irrequieta...
- O canto que o poeta
Se obrigou a cantar
Antes de Ter nascido,
Antes de a sua angústia começar."
Miguel Torga
A Carta da Paixão
"Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas."
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas."
Herberto Helder
sábado, 6 de junho de 2015
Lento, Porém Vem
"Lento vem o futuro
Lento, mas vem
E agora está mais
além das longínquas nuvens
e dos altos picos ainda indistintos
e mais além do trovão
e da aranha
Demorando-se a vir
como uma flor obstinada
que vigiou o sol
O melhor é isto
a vida cotidiana
prepara boas-vindas
guarda caldos de usura
abre memórias virgens.
Porém é!
Não tem pressa lento vem
finalmente como sua resposta
seu pão para a fome
seus anjos magoados
suas andorinhas fiéis
Lentos,
Porém não lânguido
Nem orgulhoso
Nem derrotado
Simplesmente vem
Com sua folha afiada
e sua balança
Que pergunta primeiro
Por seus sonhos
E logo por suas pátrias
Por suas memórias recentes
E recém-nascidas
Lento vem o futuro
Com suas segundas-feiras e seus marços
com seus punhos e olheiras e propostas
Lentas e, apesar de tudo, rápido
Como uma pobre estrela
Sem nome, todavia,
Convalescente e lento
Cheio de remorsos
Magnífico
Modestíssimo
Este esperto futuro que nos inventamos
Nós e as possibilidades
Cada vez mais nós
e menos a possibilidade."
Mario Benedetti
Lento, mas vem
E agora está mais
além das longínquas nuvens
e dos altos picos ainda indistintos
e mais além do trovão
e da aranha
Demorando-se a vir
como uma flor obstinada
que vigiou o sol
O melhor é isto
a vida cotidiana
prepara boas-vindas
guarda caldos de usura
abre memórias virgens.
Porém é!
Não tem pressa lento vem
finalmente como sua resposta
seu pão para a fome
seus anjos magoados
suas andorinhas fiéis
Lentos,
Porém não lânguido
Nem orgulhoso
Nem derrotado
Simplesmente vem
Com sua folha afiada
e sua balança
Que pergunta primeiro
Por seus sonhos
E logo por suas pátrias
Por suas memórias recentes
E recém-nascidas
Lento vem o futuro
Com suas segundas-feiras e seus marços
com seus punhos e olheiras e propostas
Lentas e, apesar de tudo, rápido
Como uma pobre estrela
Sem nome, todavia,
Convalescente e lento
Cheio de remorsos
Magnífico
Modestíssimo
Este esperto futuro que nos inventamos
Nós e as possibilidades
Cada vez mais nós
e menos a possibilidade."
Cosmogonía
"Nem escuridão nem caos.
Escuridão requer olhos que vêem,
como o som e o silêncio requerem orelhas,
e o espelho, a forma que o prova.
Nem o espaço nem o tempo.
Nem sequer uma divindade que premedita
O silêncio anterior à primeira
Noite do tempo, que será infinita.
O rio grande de Heráclito o escuro
Seu curso irrevogável não empreendeu,
Nem do passado flui para o futuro,
Nem do esquecimento flui para o esquecimento.
Algo que padece já. Algo que implora.
Depois a História universal. Agora.
O suicida.
Não há de ficar da noite uma estrela.
Não há de ficar a noite
Há de morrer e comigo a suma
Intolerável do universo.
Eu apagarei pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Eu apagarei a acumulação do passado.
Eu farei pó da história, pó e pó.
Estou olhando o último ponte.
Ouço o último pássaro.
Chego do nada ao nada."
Jorge Luis Borges
Escuridão requer olhos que vêem,
como o som e o silêncio requerem orelhas,
e o espelho, a forma que o prova.
Nem o espaço nem o tempo.
Nem sequer uma divindade que premedita
O silêncio anterior à primeira
Noite do tempo, que será infinita.
O rio grande de Heráclito o escuro
Seu curso irrevogável não empreendeu,
Nem do passado flui para o futuro,
Nem do esquecimento flui para o esquecimento.
Algo que padece já. Algo que implora.
Depois a História universal. Agora.
O suicida.
Não há de ficar da noite uma estrela.
Não há de ficar a noite
Há de morrer e comigo a suma
Intolerável do universo.
Eu apagarei pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Eu apagarei a acumulação do passado.
Eu farei pó da história, pó e pó.
Estou olhando o último ponte.
Ouço o último pássaro.
Chego do nada ao nada."
sexta-feira, 5 de junho de 2015
Nocturno
"Quatro da madrugada.
Vivos,
sob o arco do céu,
eu
e um cão tão magro como eu.
Sem prévia combinação, sem nada,
tivemos este encontro nesta rua
a esta hora marcada
pelo aceno da lua.
E aqui vamos agora,
num amor vagabundo
de quem não se conhece e se namora,
a encher os dois sozinhos este mundo."
Vivos,
sob o arco do céu,
eu
e um cão tão magro como eu.
Sem prévia combinação, sem nada,
tivemos este encontro nesta rua
a esta hora marcada
pelo aceno da lua.
E aqui vamos agora,
num amor vagabundo
de quem não se conhece e se namora,
a encher os dois sozinhos este mundo."
Miguel Torga
Vai-te, Poesia!
"Vai-te, Poesia!
Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.
Vai-te, Poesia!
Não quero cantar.
Quero gritar!"
Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.
Vai-te, Poesia!
Não quero cantar.
Quero gritar!"
José Gomes Ferreira
quinta-feira, 4 de junho de 2015
Retrato
"O meu perfil é duro como o perfil do mundo.
Quem adivinha nele a graça da poesia?
Pedra talhada a pico e sofrimento,
É um muro hostil à volta do pomar.
Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto
Faz um poema doce e desejado:
Mas quem passa na rua
Nem sequer sonha que do outro lado
A paisagem da vida continua."
Miguel Torga
Quem adivinha nele a graça da poesia?
Pedra talhada a pico e sofrimento,
É um muro hostil à volta do pomar.
Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto
Faz um poema doce e desejado:
Mas quem passa na rua
Nem sequer sonha que do outro lado
A paisagem da vida continua."
Miguel Torga
Ânsia que só tem
"Ânsia que só tem
o limite do sonho.
De tudo me vem
a dor que nela ponho.
Uma dor de esperança
que teima em romper
deste chão de raiva
que nos dão pra viver.
Mas que queremos arar
de flores e de frutos.
Oculte a seara
o campo de lutos."
João José Cochofel
o limite do sonho.
De tudo me vem
a dor que nela ponho.
Uma dor de esperança
que teima em romper
deste chão de raiva
que nos dão pra viver.
Mas que queremos arar
de flores e de frutos.
Oculte a seara
o campo de lutos."
João José Cochofel
Um Fado: Palavras Minhas
"Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.
Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.
Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...
Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
— que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas."
Pedro Tamen
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.
Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.
Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...
Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
— que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas."
Pedro Tamen
quarta-feira, 3 de junho de 2015
Ah! Como te Invejo
"Ah! Como te invejo,
pássaro que cantas
o silêncio das plantas
-- alheio à tempestade.
Vives sem chão
ao sol a cantar
a grande ilusão
da liberdade...
(...com algemas de ar.)"
pássaro que cantas
o silêncio das plantas
-- alheio à tempestade.
Vives sem chão
ao sol a cantar
a grande ilusão
da liberdade...
(...com algemas de ar.)"
José Gomes Ferreira
Na Praia
"És esplêndido, esplendidamente humilde, vivificador e profundo
sentir-se sob o sol, entre os demais, impelido,
levado, conduzido, misturado, rumorosamente arrastado.
Não é bom
deixar-se na margem
como o quebra-mar ou como o molusco que quer calcareamente imitar a rocha.
No entanto é puro e sereno arrasar-se no destino
de fluir e perder-se,
encontrando-se no movimento com que o grande coração dos homens palpita
estendido.
Como aquele que ali vive, ignoro em que piso,
e que vi descer pelas escadas,
e enfiar-se valentemente na multidão e perder-se.
A grande massa passava. Mas era reconhecível o diminuto coração afluído.
Ali, quem o reconheceria? Ali com esperança, com resolução ou com fé, com temeroso denodo,
com silenciosa humildade, ali ele também
transcorria.
Era uma grande praça aberta, e havia odor de existência.
Um odor de grande sol descoberto, de vento eriçando-o,
um grande vento que sobre as cabeças passava sua mão,
sua grande mão que roçava os rostos unidos e os reconfortava.
E era o serpear que se movia
como um único ser, não sei se desvalido, não sei se poderoso,
mas existente e perceptível, mas fecundador da terra.
Ali cada um pode se ver e pode se alegrar e pode se reconhecer.
Quando, na tarde escaldante, só em teu gabinete,
com os olhos estranhos e a interrogação nos lábios,
queres perguntar algo à tua imagem,
não te busques no espelho,
num extinto diálogo em que não te ouves,
Desça, desça devagar e busca-te entre os outros.
Ali estão todos, e tu entre eles.
Oh, desnuda-te, e funde-te, e reconhece-te.
Entra devagar, como banhista que, temeroso, com muito amor e receio da água,
enfia primeiro seus pés na espuma,
e sente a água subir, e já se atreve, e quase se decide.
E agora com a água na cintura todavia não confia.
Mas estende os braços, abre enfim os dois braços e se entrega completo.
E ali forte se reconhece, e cresce e se lança,
e avança e joga espumas, e salta e confia,
e bate e pula nas águas vivas, e canta, e é jovem.
sentir-se sob o sol, entre os demais, impelido,
levado, conduzido, misturado, rumorosamente arrastado.
Não é bom
deixar-se na margem
como o quebra-mar ou como o molusco que quer calcareamente imitar a rocha.
No entanto é puro e sereno arrasar-se no destino
de fluir e perder-se,
encontrando-se no movimento com que o grande coração dos homens palpita
estendido.
Como aquele que ali vive, ignoro em que piso,
e que vi descer pelas escadas,
e enfiar-se valentemente na multidão e perder-se.
A grande massa passava. Mas era reconhecível o diminuto coração afluído.
Ali, quem o reconheceria? Ali com esperança, com resolução ou com fé, com temeroso denodo,
com silenciosa humildade, ali ele também
transcorria.
Era uma grande praça aberta, e havia odor de existência.
Um odor de grande sol descoberto, de vento eriçando-o,
um grande vento que sobre as cabeças passava sua mão,
sua grande mão que roçava os rostos unidos e os reconfortava.
E era o serpear que se movia
como um único ser, não sei se desvalido, não sei se poderoso,
mas existente e perceptível, mas fecundador da terra.
Ali cada um pode se ver e pode se alegrar e pode se reconhecer.
Quando, na tarde escaldante, só em teu gabinete,
com os olhos estranhos e a interrogação nos lábios,
queres perguntar algo à tua imagem,
não te busques no espelho,
num extinto diálogo em que não te ouves,
Desça, desça devagar e busca-te entre os outros.
Ali estão todos, e tu entre eles.
Oh, desnuda-te, e funde-te, e reconhece-te.
Entra devagar, como banhista que, temeroso, com muito amor e receio da água,
enfia primeiro seus pés na espuma,
e sente a água subir, e já se atreve, e quase se decide.
E agora com a água na cintura todavia não confia.
Mas estende os braços, abre enfim os dois braços e se entrega completo.
E ali forte se reconhece, e cresce e se lança,
e avança e joga espumas, e salta e confia,
e bate e pula nas águas vivas, e canta, e é jovem.
Assim, entra com os pés nus. Entra no fervor, na praça.
Entra na torrente que te reclama e ali sê tu mesmo.
Oh pequeno coração diminuto, coração que quer pulsar
para ser também o unânime coração que alcança!"
Entra na torrente que te reclama e ali sê tu mesmo.
Oh pequeno coração diminuto, coração que quer pulsar
para ser também o unânime coração que alcança!"
Vicente Aleixandre (trad Salomão Sousa)
segunda-feira, 1 de junho de 2015
Heroicas - I
"Que me importa cantar!
Eu não sou poeta de canções
para embalar
ninhos nos corações.
Sou este ímpeto de gelo de lâmina
que se levanta mudo
diante de tudo.
(E quem me impede
de ter alma e sede?)
Mas quando canto
— as minhas canções ásperas
de vagabundo
sabem ao espanto
dum rio sem foz…
E na minha voz
sangra o desespero do mundo."
José Gomes Ferreira
Eu não sou poeta de canções
para embalar
ninhos nos corações.
Sou este ímpeto de gelo de lâmina
que se levanta mudo
diante de tudo.
(E quem me impede
de ter alma e sede?)
Mas quando canto
— as minhas canções ásperas
de vagabundo
sabem ao espanto
dum rio sem foz…
E na minha voz
sangra o desespero do mundo."
José Gomes Ferreira
Eis-nos aqui
"Eis-nos aqui, sentados à lareira
Do desespero.
O borralho ideal vai-se apagando,
Enquanto o vento da realidade
Sopra lá fora.
É esta a nossa hora
De amor
Ou de traição?
Porque fechamos todas as portas
Do coração,
Entanguidos de frio e de terror?
Se o temporal entrasse,
Talvez a labareda se ateasse
E nos desse calor ..."
Miguel Torga
Do desespero.
O borralho ideal vai-se apagando,
Enquanto o vento da realidade
Sopra lá fora.
É esta a nossa hora
De amor
Ou de traição?
Porque fechamos todas as portas
Do coração,
Entanguidos de frio e de terror?
Se o temporal entrasse,
Talvez a labareda se ateasse
E nos desse calor ..."
Miguel Torga
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