sexta-feira, 31 de julho de 2015

Cordial

"Não pares, coração!
Temos ainda muito que lutar.
Que seria dos montes e dos rios
Da nossa infância
Sem o amor palpitante que lhes demos
A vida inteira?
Que seria dos homens desesperados,
Desamparados
Do conforto das tuas pulsações
E da cadência surda dos meus versos?
Não pares!
Continua a bater teimosamente,
Enquanto eu,
Também cansado
Mas inconformado,
Engano a morte a namorar os dias
Neste deslumbramento,
Confiado
Em não sei que poético advento
Dum futuro inspirado"

Miguel Torga

Herzog

"Sofrer é outro mau hábito.
(palavras de Ramona em Herzog, de Saul Bellow)

A minha desforra são palavras.
Levanto-me de manhã amarrotado
pelo peso inclemente das mentiras
e vazo no real outro real
das letras que ninguém vislumbrará.
O pássaro que canta é uma palavra,
é uma carta escrita a este, àquele,
que me saiu do lápis da amargura;
tudo se refaria se jamais feita fosse
alguma coisa que a minha mão não desse.
Desforro-me sem gosto. Desforro-me sem gasto,
acorrentado ao que me vem de trás
e ao que virá e que não sei se quero."

Pedro Tamen

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Vida

"Do que a vida ê capaz!
A força dum alento verdadeiro!
O que um dedal de seiva faz
A rasgar o seu negro cativeiro!

Ser!
Parece uma renúncia que ali vai,
— E é um carvalho a nascer
Da bolota que cai!"

Miguel Torga

Já não Serei Feliz

I


"Já não é mágico o mundo. Só fostes deixado.
Já não compartilhas da clara lua
nem dos jardins lentos. Já não há uma lua
que não seja um espelho do passado,

cristal de solidão, sol das agonias.
Adeus das mútuas mãos e as temperas
que cercavam o amor. Hoje só guardas
a fiel memória e o deserto dos dias.

Nada se perde (repetes vãmente)
Senão o que não tem e não há tido,
porém não é bastante ser valente

para aprender a arte do esquecimento.
Um símbolo, uma rosa, te desgarra
e tu podes matar uma guitarra.

II

Já não serei feliz. Talvez não importa.
Há muitas outras coisas neste mundo;
um momento qualquer é mais profundo
e diverso do que o mar. A vida é curta

e ainda que as horas sejam tão largas, uma,
escura maravilha nos busca tão certa,
a morte, este outro mar, esta outra seta
que nos livra do sol e a lua, em suma,

e do amor. A felicidade que me destes
e tomastes deve ser apagada;
o que era tudo tem que ser nada.

Só o que me resta é o gozo de estar triste,
este costume vão que me inclina
para o sul, para certa porta, para certa esquina."


Jorge Luis Borges

Robert Frank - London 1951-1953


quarta-feira, 29 de julho de 2015

O Poderio da Solidão

"Quando é grande o poderio
da solidão, ao seu lado
estanca a aura exterior do brilho
que a fica aí preservando.
Às vezes, outra se avizinha. O sítio
da vizinhança contamina o espaço.
E uma como que luz que antecedesse o espírito
remove o vácuo,
de forma a ele se ir constituindo
espera de verbo. Âmbito
a iluminar-se recinto
aonde as solidões, aproximando-
-se a frequência aumentassem do alto poderio
e estancassem ao bordo granítico do canto."

Fernando Echevarría

terça-feira, 28 de julho de 2015

Tudo Passa e Tudo Fica..

"Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar

Nunca persegui a glória
nem deixar na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão

Gosto de ver-los pintar-se
de sol e graná voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se...

Nunca persegui a glória

Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar

Ao andar se faz caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar

Caminhante não há caminho
senão há marcas no mar...

Faz algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
se ouviu a voz de um poeta gritar
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar"...

Golpe a golpe, verso a verso...

Morreu o poeta longe do lar
cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se lhe vieram chorar
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar..."

Golpe a golpe, verso a verso...

Quando o pintassilgo não pode cantar.
Quando o poeta é um peregrino.
Quando de nada nos serve rezar.
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar..."

Golpe a golpe, verso a verso."

António Machado

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Tempo

"Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!"

Miguel Torga

Ansel Adams - Aspens Northern New Mexico 1958


Poema Transitório

"(...) é preciso partir
é preciso chegar
é preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é urgente!

... no entanto
eu gostava mesmo era de partir...
e - até hoje - quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas."

Mario Quintana

domingo, 26 de julho de 2015

O Poema

"O poema
essa estranha máscara
mais verdadeira do que a própria face…"

Mário Quintana

Pórtico

"Outros serão
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
– ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento dos tardes mornas
a calma dos beijos longos.

(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando…)

Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa
que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm…"

João José Cochofel

Eugene Smith’s - ‘Spanish Village’


sábado, 25 de julho de 2015

Brinquedo

"Foi um sonho que eu tive:
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel."

Miguel Torga

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Ode ao Destino

"Destino: desisti, regresso, aqui me tens.

Em vão tentei quebrar o círculo mágico
das tuas coincidências, dos teus sinais, das ameaças,
do recolher felino das tuas unhas retracteis
- ah então, no silêncio tranquilo, eu me encolhia ansioso
esperando já sentir o próximo golpe inesperado.

Em vão tentei não conhecer-te, não notar
como tudo se ordenava, como as pessoas e as coisas chegavam
que eu, de soslaio, e disfarçando, observava em bandos,
pura conter as palavras, as minhas e as dos outros,
para dominar a tempo um gesto de amizade inoportuna.

Eu sabia, sabia, e procurei esconder-te,
afogar-te em sistemas, em esperanças, em audácias;
descendo à fé só em mim próprio, até busquei
sentir-te imenso, exacto, magnânimo,
único mistério de um mundo cujo mistério eras tu.

Lei universal que a sem-razão constrói,
de um Deus ínvio caminho, capricho dos Deuses,
soberana essência do real anterior a tudo,
Providência, Acaso, falta de vontade minha,
superstição, metafísica barata, medo infantil, loucura,
complexos variados mais ou menos freudianos,
contradição ridícula não superada pelo menino burguês,
educação falhada, fraqueza de espírito, a solidão da vida,
existirás ou não, serás tudo isso ou não, só isto ou só aquilo,
mas desisti, regresso, aqui me tens.

A humilhação de confessar-te em público,
nesta época de numerosos sábios e filósofos,
não é maior que a de viver sem ti.
A decadência, a desgraça, a abdicação,
os risos de ironia dos vizinhos
nesta rua de má-nota em que todos moramos,
não são piores, ah não, do que no dia a dia sem ti.
É nesta mesma rua que eu ouço o amor chamar por mim,
é nela mesma que eu vejo emprestar nações a juros,
é nela que eu tenho empenhado os meus haveres e os dos outros,
nela que se exibem os rostos alegres, serenos, graciosos,
dos que preparam as catástrofes, dos que as gozam, dos que são
É nesta mesma rua que eu as vítimas.
ouço todos os sonhos passar desfeitos.

Desisti, regresso, aqui me tens,
coberto de vergonha e de maus versos,
para continuar lutando, continuar morrendo,
continuar perdendo-me de tudo e todos,
mas à tua sombra nenhuma e tutelar."

Jorge de Sena

Robert Capa - the falling soldier 1936


quinta-feira, 23 de julho de 2015

Vadiar Horas Mortas

"É na noite acolhedora
cheia de aromas dispersos
que me sinto mais abandonado,
mais só.
E a noite recebe-me,
acalenta-me.

Quase me sinto feliz da minha solidão.

Noite,
chave da consolação
e da compreensão de tudo.
Vadiar
a horas mortas
nas ruas solitárias
de iluminação fraca.

Ouvir esquecido
o bater das horas na torre
ao longe.

Tempo que passa e que esqueço."

João José Cochofel

Miudezas

"Percorro todas as tardes um quarteirão de paredes
nuas.
Nuas e sujas de idade e ventos.
Vejo muitos rascunhos de pernas de grilos pregados
nas pedras.
As pedras, entrentanto, são mais favoráveias a pernas
de moscas do que de grilos.
Pequenos caracóis deixaram suas casas pregadas
nestas pedras.
E as suas lesmas saíram por aí à procura de outras
paredes.
Asas misgalhadinhas de borboletas tingem de azul
estas pedras.
Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.
Caminho todas as tardes por este quarteirões
desertos, é certo.
Mas nunca tenho certeza
Se estou percorrendo o quarteirão deserto
Ou algum deserto em mim."

Manoel de Barros

Expiação

"Nunca me respondeste, quando te chamei,
E só Deus sabe como era urgente e aflita
A minha voz!
Mas, desgraçadamente sós,
Morrem os que se afogam
No mar da sua própria condição.
O meu, sem margens, é um descampado
Desabrigado.
Vagas e vagas de solidão,
E a tua imagem, litoral sonhado,
Sempre evocada em vão.
Nunca me respondeste, e foi melhor assim.
Um náufrago perpétuo é um pesadelo.
Dizer-me o quê?
Que, de longe, me vias afogar,
Mas que nada podias.
Pois sabias
Que os poetas jurados,
Humanas heresias,
Nascem condenados
A morrer afogados
Todos os dias
No tormentoso mar dos seus pecados."

Miguel Torga

O Instante

"Onde estarão os séculos, onde o sono
De espadas que os tártaros sonharão,
Onde os fortes muros que levantaram,
Onde a arvore de Adão e outro lenho?
O presente está só. A memória
Erige o tempo. Sucessão e engano
É a rotina do relógio. O ano
Não é menos vão que a vã história.
Entre a aurora e a noite há um abismo
De agonias, de luzes, de cuidados;
O rosto que se mira os dias gastados
Espelhos da noite não são os mesmos.
O hoje fugaz é tênue e é eterno;
Outro céu não esperes, nem outro inferno."

Jorge Luis Borges

Shigeru Yoshida


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Clarão

"O que isto é, viver!
Abrir os olhos, ver,
E ser o nevoeiro que se vê!
Nevoeiro ao nascer,
Nevoeiro ao morrer,
E um destino na mão que se não lê..."

Miguel Torga

Neste Leito de Ausência

"Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo."

Ferreira Gullar

Ansel Adams


Hoje de Manhã Saí Muito Cedo

"Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia por caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Assim tem sido sempre a minha vida, e
assim quero que possa ser sempre —
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar."

Alberto Caeiro

terça-feira, 21 de julho de 2015

Meto-me para Dentro

"Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme."

Alberto Caeiro

Uma Vida Pequena

"Uma vida pequena
para que é que serviu?
Rasto de poeira
em tarde de estio.

Que sonhos, que pragas,
que fogos em vão
calcados de terra
reacenderão?

Chora a infância, chora.
Não a que tiveste.
Mas a que na troca
do tempo apetece."

João José Cochofel

W. Eugene Smith Extremadura Town of Deleitosa, Spain, 1951


Poema da Utopia

"A noite caiu sem manchas e sem culpa.
Os homens tiraram as máscaras de bons actores.
Findou o espectáculo. Tudo o mais é arrabalde.
No alto, a utópica lua, vela comigo
e sonha inutilmente com a verdade das coisas.
- Noite! Deixa-nos também dormir..."

Fernando Namora

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Os Poemas

"Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…"

Mário Quintana

O Drama de Escrever

"Aqui estou eu,
Envolto numa manta de palavras vazias,
Á espera que as palavras venham para me agasalhar.

Tento de tudo para que elas venham e me aqueçam,
Mas nada parece ajudar,
Pois nem consigo pensar
Naquilo que posso criar.

As palavras começam a circular,
E estou a imaginar
Como posso improvisar.

Agora que já consigo rimar,
Posso parar,
Para assim admirar todo o trabalho
Que me fez chorar."

Miguel Torga

A Mão no Arado

"Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
e equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de Novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente"

Ruy Belo

Robert Frank - London 1951-1953


domingo, 19 de julho de 2015

Amador sem Coisa Amada

"Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional."

António Gedeão

Auto-Retrato

"Está incompleto. Ainda se vê metade do rosto. Sabe-
mos
como se acentua junto dos olhos a mesma sombra. Os
lábios
fecham-se; à sua volta, um halo apenas: continuam
afastadas
as pregas da cor, o rumor trazido pela luz. Há um con-
torno
que pode tornar-se nítido. É tudo o que se
procura. Depois esperamos
que venha a respiração ao encontro dessa superfície
até se encontrar
um nome. É o meu. Se quiserem podem esquecê-lo
agora."

Fernando Echevarria

Um Velho em Veneza

"Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos,
o poeta Ezra Pound,
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Livi.
Comentou-lhe, sem autocompaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema como um cadáver -,
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas."

Juan Luis Panero
(trad Joaquim Manuel Magalhães)

Dorothea LangeThe Road West, New Mexico, 1938


sábado, 18 de julho de 2015

Calmaria

"Mar!
o teu cântico verde-azul
insinuou-se-me no sangue,
salgou-me os lábios.
E o corpo inteiro
ressou-me de ecos silenciosos
esmaecidos em bruma;
os sentidos,
temperados de Sol e água,
espreguiçaram-se indolentes de ritmo.
Rara
esta inteireza de espírito,
quando nem o passado deixou resíduos
nem o futuro espreita..."

João José Cochofel

O Solitário Gesto de Viver

"Onde as patas da vida pisam firme,
armei o meu bivaque. Sou gaudério
nos longes destes campos assolados
por sóis intermináveis que ressecam
os verdes pervagados das querências.
Ali onde me encontro, planto as solas
dos pés como o quebracho da fronteira.
A solas me interrogo no horizonte,
sombrero descaído para a nuca,
desarmado, cismando, a bomba e a cuia
me servindo do amargo todo vida.
Bombachas encardidas, poncho roto,
não afrouxo o garrão, sigo adelante.
Quem sou eu, afinal? Alma penada,
lobisomem perdido na campina,
um ratão do banhado espavorido
no incêndio da macega desta vida,
ela própria rompida em suas partes
mais vitais, mais profundas, mais curtidas,
um pelego no sol, colgado em varas
nas ventanas do pampa enlouquecido."

Reynaldo Valinho Alvarez

O Segredo

"Deus não sabe os meus segredos.
As paredes sem ouvidos não escutam
a confidência interminável.
O que perco, ninguém sabe. Dissolve-se em mim,
luminária secreta, sílaba que os lábios não ousam murmurar
diante de teu corpo no escuro,
constelação.

E o sobejo de mim, último raio de sol,
fulge no deserto. E nos penhascos
ressoa
                     constelado
o meu grito de amor."

Lêdo Ivo

Ansel Adams


sexta-feira, 17 de julho de 2015

A liberdade, Sim, a Liberdade!

"A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!

A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?"

Álvaro de Campos

Pôr do sol

"É sempre comovente o pôr do sol
por indigente ou berrante que seja,
mas ainda bem mais comovedor
é o brilho desesperado e derradeiro
que enferruja a planície
quando o último sol ficou submerso.
Dói-nos reter essa luz tensa e clara,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e que pára de súbito
quando notamos como é falsa,
quando acabam os sonhos,
quando sabemos que sonhamos."

Jorge Luis Borges

Expiação

"Nunca me respondeste, quando te chamei,
E só Deus sabe como era urgente e aflita
A minha voz!
Mas, desgraçadamente sós,
Morrem os que se afogam
No mar da sua própria condição.
O meu, sem margens, é um descampado
Desabrigado.
Vagas e vagas de solidão,
E a tua imagem, litoral sonhado,
Sempre evocada em vão.
Nunca me respondeste, e foi melhor assim.
Um náufrago perpétuo é um pesadelo.
Dizer-me o quê?
Que, de longe, me vias afogar,
Mas que nada podias.
Pois sabias
Que os poetas jurados,
Humanas heresias,
Nascem condenados
A morrer afogados
Todos os dias
No tormentoso mar dos seus pecados."

Miguel Torga

Werner Bischof


quinta-feira, 16 de julho de 2015

Fruto de Sol na Minha Boca.

"Fruto de sol na minha boca.
-- Terra tão vasta
e a vida tão pouca!

De Inverno e de Verão faça sol de Agosto.
-- Fruto na boca
deixou o seu gosto.

Assim deito meus olhos à flor do mundo.
Nem me peçam mais:
os lagos serenos têem menos fundo."

João José Cochofel

É Amargo o Coração do Poema

"É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma."

Herberto Helder

Sonhos

"Sonho suave e bom que me envolveste
Não me deixes sózinho sobre a terra[.]
Se vais, contigo esta minha alma encerra,
Leva-a contigo a Deus d’onde vieste.

Como do céu minha alma assim mereceste
Que por ti d’ele um sonho se descerra
Ai com que frenesi que a ti se aferra,
Sonho, a ti sonho, esta alma a que desceste.

Sonhos que em vossas asas me tomais
Em meio do caudal em que derivo
E em vir a mim dos outros me estremais.

Sonho, ó ultimo sonho de que vivo[,]
Ai não me deixes tu[,] como os demais
Retém-no em meu seio – ó meu senhor! – cativo."

Ângelo de Lima

Robert Frank - The americans trolley - New Orleans - 1955


quarta-feira, 15 de julho de 2015

Heróicas XXXVI

"Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera,
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido…

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
com a minha sede."

José Gomes Ferreira

Biografia

"Sonho, mas não parece.
Nem quero que pareça.
É por dentro que eu gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.
Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.

Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa.
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela, prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira
Numa agressiva fúria se liberta."

Miguel Torga

Acordo de Noite, Muito de Noite, no Silêncio Todo.

"Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo.
São — tictac visível — quatro horas de tardar o dia.
Abro a janela directamente, no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma janela iluminada!
Fraternidade na noite!
Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.

Quem serás? Doente, moedeiro falso, insone simples como eu?
Não importa. A noite eterna, informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas duas luzes,
Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a vida.
Sobre o parapeito da janela da traseira da casa,
Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro,
Debruço-me para o infinito e, um pouco, para mim.

Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da janela com luz?
Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua janela incógnita...
Tem graça: não tens luz eléctrica.
Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!"

Álvaro de Campos

Eugene Smith


terça-feira, 14 de julho de 2015

Poeta

"Lembras-te, Mãe

do menino que perdeste
e que ficou...
do menino que ficou
mas que fugiu...?

Anda agora pela vida...

É o poeta dos olhos molhados
do sorriso triste
dos dedos longos...

Anda agora pela vida...

E um dia, Mãe
ele há-de voltar
novamente,
para lhe aqueceres as mãos frias
e chorar com ele as ilusões perdidas.

Entretanto
deixa-o sofrer mais algum tempo..."

João José Cochofel

Indícios de Primavera

"Como exprimir
esta incerteza,
esta ansiedade,
esta tristeza vaga, indefinida,
a que nem sequer conheço bem as causas?!...

Ouvem-se galos ao longe
e a brisa mal se sente
na atmosfera parada.
O sol declinando doura tudo,
e a tarde vai descendo
calma e deliciosa....
À minha volta tudo é silêncio,
apenas cortado pelo latir dos cães,
e o cantar dos galos longínquos
e o barulho do comboio que passa ao fundo.

Tudo é calmo e sereno...
até mesmo o meu desespêro
que me põe lágrimas nos olhos..."

João José Cochofel

Calo-me, Espero

"Calo-me, espero
até que a minha paixão
e a minha poesia e a minha esperança
sejam como aquela que anda pela rua;
até que possa ver com os olhos fechados
a dor que já vejo com os olhos abertos."

Antonio Gamoneda 
(Trad João Moita)

Como de Súbito na Vida

"Como de súbito na vida tudo cansa!
e cansa-nos a vida e nos cansamos dela,
ou ela é quem se cansa de nós mesmos,
na teima de existir e desejar?
Porque, neste cansaço, não o que não tivemos,
ou que perdemos, ou nos foi negado,
o que de que se cansa, mas também
o quanto temos, nos ama, se nos dá
a até os simples gozos de estar vivo.
Um dia é como se uma corda se quebrara,
ou como se acabara de gastar-se,
que nos prendia a tudo e tudo a nós.
Não é que as coisas percam importância,
as pessoas se afastem, se recusem,
ou nós nos recusemos. Não. è mais
ou menos que isto- se deseja igual
ao como até há pouco desejávamos.
É talvez mais. Mas sem valor algum.
O dia é noite, a noite é dia, a luz
se apaga ou se derrama sobre as coisas
mas elas deixam de ter forma e cor,
ou se sumir no espaço como forma oculta.
E o que sentimos é pior que quanto
dantes sentíamos nas horas ásperas
da fúria de não ter ou de ter tido.
Porque se sente o não sentir. Um tédio
Não como o tédio antigo. Nem vazio.
O não sentir. Que cansa como nada.
Até dizê-lo cansa. É inútil. Cansa."

Jorge de Sena

Werner Bischof


segunda-feira, 13 de julho de 2015

Se em Nós a Solidão Viver Sozinha

"Se em nós a solidão viver sozinha,
sem que nada em nós próprios a perturbe,
cada figura passará rainha
na antiguidade súbita da urbe.

Um acento de pena irá na linha
vincar a eternidade de figura
a um rosto que quase só caminha
para dentro de o vermos pela pura

substância em si que vive a solidão
dentro de nós. E sendo nós só margem
do seu reino de ver por onde vão

as figuras passando na paisagem
de um antigo fulgor de coração
aonde passam desde sempre. E agem."

Fernando Echevarría

Protesto

"Desespero da vida, crime turvo
Como o de água de rio que não corre;
Traição de bicho, arrependido e curvo
Dentro da concha onde se abisma e morre.

Cegueira negra no areal batido
Por altas e divinas claridades;
Pinheiro seco no pinhal, erguido
Como fantasma vil doutras idades.

Desespero da vida! Cobardia
Do tripulante duma embarcação
Que leva sonho, céu e maresia
Nas velas, no convés e no porão!"

Miguel Torga

Começo a conhecer-me. Não existo.

"Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato."

Álvaro de Campos

André Kertész


domingo, 12 de julho de 2015

Certezas, Precisam-se

"Preciso urgentemente de adquirir meia dúzia de valores absolutos,
inexpugnáveis e impenetráveis,
firmes e surdos como rochedos.

Preciso urgentemente de adquirir certezas,
certezas inabaláveis, imensas certezas, montes de certezas,
certezas a propósito de tudo e de nada,
afirmadas com autoridade, em voz alta para que todos oiçam,
com desassombro, com ênfase, com dignidade,
acompanhadas de perfurantes censuras no olhar carregado, oblíquo.

Preciso urgentemente de ter razão,
de ter imensas razões, montes de razões,
de eu próprio me instituir em razão.
Ser razão!
Dar um soco furibundo e convicto no tampo da mesa
e espadanar razões nas ventas da assistência.

Preciso urgentemente de ter convicções profundas,
argumentos decisivos,
ideias feitas à altura das circunstâncias.
Preciso de correr convictamente ao encontro de qualquer coisa,
de gritar, de berrar, de ter apoplexias sagradas
em defesa dessa coisa.
Preciso de considerar imbecis todos os que tiverem opiniões diferentes

da minha,
de os mandar, sem rebuço, para o diabo que os carregue,
de os prejudicar, sem remorsos, de todas as maneiras possíveis,
de lhes tapar a boca,
de lhes cortar as frases no meio,
de lhes virar as costas ostensivamente.
Preciso de ter amigos da mesma cor, caras unhacas,
que me dêem palmadinhas nas costas,
que me chamem pá e me façam brindes
em almoços de camaradagem.
Preciso de me acocorar à volta da mesa do café,
e resolver os problemas sociais
entre ruidosos alívios de expectoração.
Preciso de encher o peito e cantar loas,
e enrouquecer a dar vivas,
de atirar o chapéu ao ar,
de saber de cor as frequências dos emissores.
O que tudo são símbolos e sinais de certezas.
Certezas!
Imensas certezas! Montes de certezas!
Pirinéus, Urais, Himalaias de certezas!"


António Gedeão

As Seis Cordas

"A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que boiam no seu negro
abismo de madeira."

Federico Garcia Lorca

Os Ombros Suportam o Mundo

"Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação."

Carlos Drummond de Andrade

Dorothea Lange


sábado, 11 de julho de 2015

Sei que o Único Canto

"Sei que o único canto,
o único digno dos cantos antigos,
a única poesia,
é a que cala e ainda ama este mundo,
esta solidão que enlouquece e despoja."

Antonio Gamoneda

Poemas de Desilusão e de Revolta

      IV

"Isto
de ser o que se não é,
de andar sempre a mentir
(quantas vezes a nós próprios!)
tiranizados,
forçados,
chegando mesmo a esquecer
por vezes,
que somos bois debaixo de uma canga:
Isto,
juro-vos,
ainda há-de acabar."

João José Cochofel

Não

"Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.

Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.

Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...
Talvez isso tudo...

Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...

A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?"

Álvaro de Campos

Andre Kertesz - Sidewalk - Paris - 1929


sexta-feira, 10 de julho de 2015

Regresso Eterno

"Altos silêncios da noite e os olhos perdidos, 
Submersos na escuridão das árvores 
Como na alma o rumor de um regato, 
Insistente e melódico, 
Serpeando entre pedras o fulgor de uma ideia, 
Quase emoção; 
E folhas que caem e distraem 
O sentido interior 
Na natureza calma e definida 
Pela vivência dum corpo em cuja essência 
A terra inteira vibra 
E a noite de estrelas premedita. 

A noite! Se fosse noite. . . 
Mas os meus passos soam e não param, 
Mesmo parados pelo pensamento, 
Pelo terror que não acaba e perverte os sentido 
A esquina do acaso; 
Outros mundos se somem, 
Outros no ar luzes refletem sem origem. 
É por eles que os meus passos não param. 
E é por eles que o mistério se incendeia.
 
Tudo é tangível, luminoso e vago 
Na orla que se afasta e a ilha dobra 
Em balas de precário sonho... 
Tudo é possível porque à vida dura 
E a noite se desfaz 
Em altos silêncios puros. 
Mas nada impede o renascer da imagem, 
A infância perdida, reavida, 
Nuns olhos vagabundos debruçados, 
Junto a um regato que sem cessar murmura." 

Ruy Cinatti

Teias de Aranha Penduradas da Razão

"Teias de aranha penduradas da razão
Numa paisagem de cinza absorta;
Já passou o furacão do amor,
Já não resta pássaro algum.

Tampouco folha alguma,
Todas vão longe, como gotas de água
De um mar quando seca,
Quando já não há lágrimas suficientes,
Porque alguém, cruel como um dia de sol na primavera,
Com apenas sua presença dividiu em dois um corpo.

Agora cabe recolher os restos de prudência,
Embora sempre algum nos falte;
Recolher a vida vazia
E caminhar esperando que lentamente se encha,
Se é possível, outra vez, como antes,
De sonhos desconhecidos e desejos invisíveis.

Tu não sabes nada disso,
Tu estás lá, cruel como o dia;
O dia, essa luz eu abraço bem apertado este triste muro,
Um muro, não entendes?,
Um muro diante do qual estou só."

Luis Cernuda

O Telefone Negro

"Marquei os números antigos com um vago desejo de respostas,
sabendo já que ninguém me esperava.
Com um desejo vão de ouvir vozes amadas
e que reconhecessem também a minha voz.
Meu telefone é negro,
e na noite ainda mais negra,
somente ouvia o som que chamava uns sepulcros.
E eu sozinho em casa.
Rasga-se a manhã
nos vidros turvos. Vai chegando o Verão.
Cantam os pássaros (os mesmos?),
E não sei se há consolo.

Com a luz que nua amanhece,
nu, entro em casa,
e toca o telefone.
Apresso-me. Digo-lhe que me fale.
Continua o silêncio, sei que estão a falar.
Sai a voz de alguma boca morta,
ou, acaso, de tão só, em mim há surdez?
Oiço outra vez os pássaros. E sei que são os mesmos
que então cantavam, tão eternos e frágeis.
Tenho que falar. Com quem,
se não saem também sons da minha boca?"

Francisco Brines

Robert Doisneau


quinta-feira, 9 de julho de 2015

No Reino do Pacheco

"Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos,
E a vida? Não a vivemos.

Querer viver (deixai-me rir!)
seria muito exigir…
Vida mental? Com certeza!
Vida por detrás da testa
será tudo o que nos resta?
Uma ideia é uma ideia
— e até parece nossa! —
mas quem viu uma andorinha
a puxar uma carroça?

Se à ideia não se der
o braço que ela pedir,
a ideia, por melhor
que ela seja ou queira ser,
não será mais que bolor,
pão abstracto ou mulher
sem amor!

Às duas por três nascemos,
às duas por três morremos.
E a vida? Não a vivemos.

Neste reino de Pacheco
— do que era todo testa,
do que já nada dizia,
e só sorria, sorria,
do que nunca disse nada
a não ser pra galeria,
que também não o ouvia,
do que, por detrás da testa,
tinha a testa luzidia,
neste Reino de Pacheco,
ó meus senhores que nos resta
senão ir aos maus costumes,
às redundâncias, bem-pensâncias,
com alfinetes e lumes,
fazer rebentar a besta,
pô-la de pernas pró ar?

Por isso, aqui, acolá
tudo pode acontecer,
que as ideias saem fora
da testa de cada qual
para que a vida não seja
só mentira, só mental…"

Jorge Luís Borges

Sonho Perdido

"Como foi que o meu sonho se perdeu
No liso descampado desta vida?
Distraída
Atenção
Que tão ingloriamente empobreceu
Quem não tinha outro vinho e outro pão!

Na fundura dos bolsos não encontro
Nem sequer a lembrança desenhada
Do seu calor!
Perdi o sonho… E resta-me o pudor
Deste triste poema ressequido…
Perdi o sonho… E nunca se encontrou
Nenhum sonho perdido."

Miguel Torga

Vai-te, Poesia!

"Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia!

Não quero cantar.
Quero gritar!"

José Gomes Ferreira

Robert Doisneau - Wanda wiggles her hips 1953


quarta-feira, 8 de julho de 2015

Teleologia

"Atravessamos perigos sem saber.
Abismos.
Condores.
Causas sinistras.

Nos intervalos cíclicos votamos
seguir em frente.

Que fazer, não fazer
nestes compromissos
a que nos entregamos?

Perigos não previstos
surgem nos abismos
da realidade.

Sinistras aves, a verdade simples,
descem abismos
sempre quando somos."

Ruy Cinatti

Outra Vez

"Outra vez este desapego de tudo.
Outra vez
este olhar indiferente para tudo:
não encontrar na vida uma razão de viver.

Triste
encosto-me na janela
e olho a natureza livre.

Talvez valesse a pena ser árvore...

Talvez valesse a pena ser cão.

Tudo
menos andar amarrado uma vida inteira
aos preconceitos inúteis
duma civilização caduca."

João José Cochofel

E só Agora Penso

"E só agora penso:
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim
mesmo?
para não ver quão pouca luz tenho dentro?
ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso.
agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?
─ cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados pelo
fundo e amargo espelho velho:
e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente
o mesmo."

Herberto Helder

Robert Doisneau


terça-feira, 7 de julho de 2015

Poesia

"Deus, que nos fizeste mortais, porque é que nos deste a sede de eternidade de que é feito o poeta?"

Luis Cernuda

Monólogo de Faroleiro

"Como preencher-te, solidão,
Senão contigo mesma.
Em menino, entre as pobres guaridas da terra,
Quieto num canto escuro,
Procurava em ti, grinalda acesa,
Minhas auroras futuras e furtivos nocturnos,
E em ti os vislumbrava,
Naturais e exactos, também livres e fiéis,
À minha semelhança,
À tua semelhança, eterna solidão.

Depois perdi-me pela terra injusta
Como quem busca amigos ou ignorados amantes;
Diferente do mundo,
Fui luz serena, desenfreado anelo,
E na chuva sombria ou no sol evidente
Queria uma verdade que te atraiçoasse,
Esquecendo em meu anseio
Como as asas fugitivas criam sua própria nuvem.

E ao velar-se a meus olhos
Com nuvens sobre nuvens de outono transbordado
A luz daqueles dias em ti mesma entrevistos,
Neguei-te por bem pouco;
Por amores vulgares, nem certos nem fingidos,
Por calmas amizades de poltrona e aparência,
Por um nome de reduzida cauda num mundo fantasma,
Nauseabundos como os autorizados,
Úteis somente para o elegante salão sussurrado,
Em bocas de mentira e palavras de gelo.

Por ti encontro-me agora o eco da antiga pessoa
Que fui,
Que eu próprio manchei com aquelas traições juvenis;
Por ti encontro-me agora, constelados achados,
Limpos de outro desejo,
O sol, meu deus, a noite rumorosa,
A chuva, a intimidade de sempre,
O bosque e seu hálito pagão,
O mar, o mar, belo como o seu nome;
E sobre todos eles,
Corpo escuro e esbelto,
Encontro-te a ti, ó solidão tão minha,
E dás-me força e debilidade,
Como à ave cansada os braços da pedra.

Debruçado na varanda olho insaciável as ondas,
Oiço suas escuras maldições,
Contemplo seus brancos afagos;
E erguido de um berço vigilante
Sou na noite um diamante que gira a avisar os homens,
Por quem vivo, mesmo quando os não vejo;
E assim, longe deles,
Esquecidos já seus nomes, amo-os em multidões,
Roucas e violentas como o mar, minha morada,
Puras perante a espera de uma revolução ardente
Ou rendidas e dóceis, como o mar sabe ser
Quando chega a hora do repouso que sua força conquista.

Tu, verdade solitária,
Transparente paixão, minha solidão de sempre,
És um imenso abraço;
O sol, o mar,
A escuridão, a estepe,
O homem e seu desejo,
A multidão irada,
- Que são senão tu mesma?
Por ti, minha solidão, procurei-os um dia;
Em ti, minha solidão, amo-os agora."

Luis Cernuda

Apesar de Tudo

"Fui despojado da luz e do sorriso
e avanço lentamente
buscando um futuro que não me pertence
porém que me aguarda,
apesar de tudo."

Carlos Enrique Ungo

Martin Munkacsi


segunda-feira, 6 de julho de 2015

Nos Jardins,na Modorra em que se Alongam

"Nos jardins,na modorra em que se alongam,
a cadência do passo marca o triste
e belo dia. Os que passam mondam
tudo o que neles em vão ainda insiste:

Rota a fachada! Morna, a tarde cai;
autómatos povoam a cidade.
(Só uma ronda de crianças vai
lavando a nódoa. Feliz idade.)

Que náusea isto me dá! Que calma vã
de que o pisar burguês todo se veste!
Cinza. Nada que a vida lhes aloire.

E o cheiro que incomoda a gente sã
e vem dos bairros pobres onde há peste...
- Mais sol! Bomba de sol que tudo estoire!"

João José Cochofel

Passado

"As lembranças, esta sombra demasiado longa
do nosso breve corpo,
esta estria de morte
que deixamos vivendo,
as lúgubres e duradouras lembranças,
ei-las que aparecem:
melancólicos e mudos
fantasmas agitados por um vento fúnebre.
E não me és mais que uma lembrança.
Estás morta na minha memória.
Agora sim que posso dizer
que me pertences
e qualquer coisa entre nós aconteceu
irremediavelmente.
Tudo acabou tão rápido!
Precipitado e leve
o tempo reúne.
Dos fugitivos instantes se tece uma história
bem acabada e triste.
Devíamos saber que o amor
a vida cresta e faz voar o tempo."

Vincenzo Cardarelli

Cerco

"O corpo começa a consentir,
ceder, abrir fendas
com as chuvas altas,
a mostrar, quase exibir
velhas raízes,rugas, mágoas,
a secura próxima dos galhos;
corpo, sim,ele que foi afável
e crédulo e solar - tão
indiferente agora às matinais
e despenteadas vozes:
distante e tão cercado
de apagadas águas."

Eugénio de Andrade

Orfeu Rebelde

"Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento. 

Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura. 

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar a Musa
Se o canto
É de terror ou de beleza."

Miguel Torga

Vivian Maier


domingo, 5 de julho de 2015

Ressurreições

"Algo já morre em mim todos os dias;
A hora que se afasta e me arrebata,
Do tempo na silenciosa catarata,
Saúde, amor, os sonhos e as alegrias.

Ao evocar as minhas ilusões,
Penso: “Eu não sou eu!” por que insensata,
A mesma vida com seu sopro mata
Meu ser antigo e traz lentas aflições?

Sou um estranho ante meus próprios olhos,
Um novo sonhador, um peregrino,
Que ontem pisava flores e hoje...abrolhos.

E em todo instante é tal meu desconcerto,
Que, ante minha morte próxima, imagino
Que, muitas vezes, vivo já estou morto!"

Julio Flórez

Sonhos

"Se o sonho fosse (como dizem) uma
Trégua, um puro repouso da mente,
Por que, se te despertam, bruscamente,
Sentes que te hão roubado uma fortuna?

Por que é tão triste madrugar? A hora
Nos despoja de um dom inconcebível,
Tão íntimo que só é traduzível
Num torpor que a vigília doura

De sonhos, que bem podem ser reflexos
Torcidos dos tesouros da sombra,
De universo intemporal que não se nomeia

E que um dia distorce em seus espelhos.
Quem serás esta noite no escuro
Sonho, do outro lado de seu muro?"

Jorge Luis Borges

Exílio

"É a noite sem fim, a desvelada
noite que, como os fios de uma faca, sela
implacável recorte em amarela
morte, nossa silhueta alienada.

Viver, quando viver não vale nada,
é igual semear, com uma semente
estéril, a dor tão humilhante
de uma existência rota e postergada.

E o insone repete de modo inexorável
o passo da vida irrevogável,
que, sem deixar de sentir, o leva embora.

Onde nos levará tão sem estradas,
irrisório brinquedo do destino, e suas jogadas,
Nossa razão, destrambelhada e velha senhora?"

Juan José Domenchina

André Kertész


sábado, 4 de julho de 2015

Epitáfio para um Poeta

"Quis cantar, cantar
Para esquecer
Sua vida verdadeira de mentiras
E lembrar
Sua mentirosa vida de verdades."


Octavio Paz

Já não Serei Feliz

"Já não é mágico o mundo. Só fostes deixado.
Já não compartilhas da clara lua
nem dos jardins lentos. Já não há uma lua
que não seja um espelho do passado,

cristal de solidão, sol das agonias.
Adeus das mútuas mãos e as temperas
que cercavam o amor. Hoje só guardas
a fiel memória e o deserto dos dias.

Nada se perde (repetes vãmente)
Senão o que não tem e não há tido,
porém não é bastante ser valente

para aprender a arte do esquecimento.
Um símbolo, uma rosa, te desgarra
e tu podes matar uma guitarra.

II

Já não serei feliz. Talvez não importa.
Há muitas outras coisas neste mundo;
um momento qualquer é mais profundo
e diverso do que o mar. A vida é curta

e ainda que as horas sejam tão largas, uma,
escura maravilha nos busca tão certa,
a morte, este outro mar, esta outra seta
que nos livra do sol e a lua, em suma,

e do amor. A felicidade que me destes
e tomastes deve ser apagada;
o que era tudo tem que ser nada.

Só o que me resta é o gozo de estar triste,
este costume vão que me inclina
para o sul, para certa porta, para certa esquina."

Jorge Luis Borges

Sim, é Verdade, não Tenho Motivo

"Sim, é verdade, não tenho motivo
para esta tristeza, o desalnto
que logo de manhã em mim acorda
com o abrir da janela e a certeza

de que outro dia igual em vão começa.
O sol, a chuva, a névoa, sempre o tédio
dos passos repetidos tudo aplaina.
O trabalho repugna, a arte enjoa

mastigada sem fome. Que fastio
por tudo! Mas não sei porquê, se o amor,
a esperança, resistiram ao pó do tempo,

secretos e intactos ao desgaste.
Que anemia soluça no meu sangue?
Dou-lhe o nome de exílio. Há quantos anos!..."

João José Cochofel

André Kertész


sexta-feira, 3 de julho de 2015

O Labirinto

"Zeus não podia desatar as redes
De pedra que me cercam. Ele há esquecido
Os homens que antes fui. Sigo o odiado
Caminho de monótonas paredes
Que é meu destino. Retas galerias
Que se curvam em círculos secretos
Ao cabo dos anos. Parapeitos
Que aprisionarama a usura dos dias.
Na pálida poeira há decifrado
Rastros que temo. O ar me há traído
Nas côncavas tardes um bramido
Ou o eco de um bramido desolado.
Sei que na sombra há outro, cuja sorte
É fatigar as solidões no eterno
Que tecem e destecem este inferno
E anseia por meu sangue e devorar minha morte.
Nós buscamos os dois. Que bom que era
Se fosse este o último dia da espera"

Jorge Luis Borges

A Contemplação das Horas

"A insônia é uma casa aberta,
Uma compilação das goteiras golpeando de encontro ao assoalho,
A pena capital para Morfeu,
O reino da incerteza, o peso do fato,
O medo pelos mortos, o momento para desejar-te,
O preço por seus beijos.

O tempo de algumas noites parece morto,
E é necessário velá-lo na contemplação das horas
Sonhando desperto,
Inventando tons similares aos teus
Que sejam no seu canto, para sonhar com teu corpo.

A insônia é o momento delicioso da recordação,
O trago do vinagre pelo medo de morrer a seco,
O ressonar do relógio
Com arritmia nos minutos,
As cataratas do corpo
E duas vozes num tambor;
como a dizer, é o sonho."

César Gonzalez Granados

Maurizio Polese


quinta-feira, 2 de julho de 2015

Campo

"A tarde está morrendo
como uma fogueira humilde que se apaga.

Além, sobre os montes,
restam algumas brasas.

E esta árvore rota no caminho branco,
faz chorar de pena.

OS Dois ramos no tronco ferido e uma
folha murcha e negra em cada ramo!

Choras? ... Entre os álamos de ouro,
longe, a sombra do amor te aguarda."

Antonio Machado

A Callar!

"Aprendi a calar,
a sorrir
quando era absolutamente necessário,
a correr, a não sentir,
a amar sem que se note,
a comer sem prazer,
a esquecer logo,
a viver só,
a pensar nos demais
para não pensar em si mesmo
e a rezar para não despertar,
porque, às vezes,
(ainda apesar de tudo)
surge um desejo de viver
e o monstro segue firme
ao nosso lado
mesmo se resta apenas o remédio de esquecer
e recorrer à oração,
ao maratonismo e ao silêncio
para continuar fugindo e temendo,
para não pensar
que outro dia
as coisas podem ser de outra maneira."

Jorge Canese

Pelo tempo passas

"Pelo tempo passas, o ultrapassas, segues além dele,
Roças a superfície da morte
E distraída segues até onde não é possível te seguir.

Tu és a que ultrapassas o tempo
A que separa a morte como se fosse uma cortina,
A que destapa o espelho como se fosse uma lata de cerveja que logo
Bebes e jogas vazia sobre o asfalto."

José Carlos Becerra

Werner Bischof


quarta-feira, 1 de julho de 2015

Quero Desaparecer mas não Morrer

"Quero desaparecer mas não morrer
Quero não ser e perdurar
e saber que perduro
Bato às portas da morte
e retiro-me
Chamo a vida e fujo envergonhado
Quero ser toda a minha alma e não posso
quero ser todo o meu corpo e não o alcanço."

Vicente Huidobro (Trad Ricardo Marques)

Aquela Falsa e Triste Semelhança

"Aquela falsa e triste semelhança
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,

Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
O que passa, ondeando, em torno meu,
Passa (...)

Dormir, despir-me deste mundo ultraje,
Como quem despe um dominó roubado.
Despir a alma postiça como a um traje.

Tenho náusea carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar. E vou,
Anónimo, (...) menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou."

Álvaro de Campos

Cartier Bresson