sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Dia de Natal

"Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziante,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha em pijama.

Ah!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas."

António Gedeão

Recomeça….

"Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…"

Miguel Torga

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Difícil fotografar o silêncio.

"Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.

Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski — seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal."

Manoel de Barros

Fraternidade

"Fraternidade
de débeis sentimentos inexactos,
cada qual com a sua verdade,
que só a imaginamos
para destruir
o sonho injusto dos factos.
Mas não me digam que vai continuar a desistência,
este eterno sempre da repetição da mesma coisa,
este terror medíocre de sentirmos debaixo dos pés
a impossível Ponte
que nunca poisa
nem poisará
em nenhum horizonte."

José Gomes Ferreira

Poesia

"Estou nu diante da água imóvel.
Deixei minha roupa no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino:

chegar à margem e ter medo da quietude da água."

Antonio Gamoneda
"Livro do Frio"
Trad. José Bento

Despedida

"Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia."

Eugénio de Andrade
"Ostinato Rigore"

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Pórtico

"Outros serão
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
— ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento das tardes mornas
a calma dos beijos longos.
(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando...

Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa
que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm ..."

João José Cochofel

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Poema do Homem Só

"Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém."

António Gedeão
(Teatro do Mundo)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Estrela da Manhã

"Numa qualquer manhã, um qualquer ser,
vindo de qualquer pai,
acorda e vai.

Vai.

Como se cumprisse um dever.

Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos;
nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar.
E em seu impessoal desejo latejam todos os restos
de quantos desejos ficaram antes por desejar.

Abre os olhos e vai.

Vai descobrir as velas dos moinhos
e as rodas que os eixos movem,
o tear que tece o linho,
a espuma roxa dos vinhos,
incêncio na face jovem.

Cego, vê, de olhos abertos.
Sozinho, a multidão vai com ele.
Bagas de instintos despertos
ressuma-lhe à flor da pele.

Vai, belo monstro.
Arranca
as florestas com os teus dentes.
Imprime na areia branca
teus voluntariosos pés incandescentes.

Vai

Segue o teu meridiano, esse,
o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais;
o plano de barro que nunca endurece,
onde a memória da espécie
grava os sonos imortais.

Vai

Lábios húmidos do amor da manhã,
polpas de cereja.
Desdobra-te e beija
em ti mesmo a carne sã.

Vai

À tua cega passagem
a convulsão da folhagem
diz aos ecos
«tem que ser».

O mar que rola e se agita,
toda a música infinita,
tudo grita
«tem que ser».

Cerra os dentes, alma aflita.
Tudo grita
«Tem que ser»."

António Gedeão, 
"Movimento Perpétuo"

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Ao vento de Outono

"Vento de outono, vento solitário,
vento da noite,
força obscura que se desprende
do infinito e volta ao infinito,
rodopia dentro de mim, conjura
contra meu coração tua força,
arranca de um vez a casca
do fruto que não madura."

Joan Vinyoli

Termo

"Pára, imaginação!
Não há mais aventura, nem poesia.
A hora é de finados,
Com versos apagados
Na lareira onde a fogueira ardia.

Pára, é a lei.
Agora é só cansaço desiludido
E memória teimosa que entristece
O nada que acontece
E o muito acontecido.

Pára, porque findou
O tempo intemporal
Do amor e da graça concedida
A quem nele, no seu barro original,
Modela a própria vida."

Miguel Torga

Solidão

"Aproximo-me da noite 
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo"

Mia Couto 
"Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Cântico Negro

"“Vem por aqui” — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!"

José Régio
(Poemas de Deus e do Diabo)

sábado, 13 de agosto de 2016

Testigo de Ceniza

"Na rocha batida pelo mar
ou na casca seca dessa árvore,
é o vento que uiva contra os vidros,
sobre a pegada da areia ou na terra mais dura,
no fumo que se te desfaz entre as mãos,
escreve, escreve, como se descobrisses ainda as palavras.
Escreve para peles ou pedras,
para brancos cavalos, para esses olhos
que nunca te olharam e que tu jamais olhaste.
Escreve sem orgulho, mas tão pouco com falsa modéstia,
que não foi em vão tua passagem pelo mundo.
Esquece a seguir tão estúpida frase
e olha para o mar, as velas desse barco
que vem resgatar-te, seu paciente cabecear sobre as ondas,
as luzes reflectidas na espuma.
E escreve – sobretudo – quando o vires afundar-se,
quando desaparecer como o sonho ou a bruma,
quando já não existir – pois é sabido que jamais existiu –
escreve e repete-o em voz alta para o surdo mar, para o céu distante.
Aprende assim, testemunha de cinza,
o final implacável de teu labor ilusório
e então, sem hesitar - que a mão não te trema –
escreve, escreve, escreve, escreve."

Juan Luis Panero


Um Velho em Veneza

"Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos,
o poeta Ezra Pound,
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Livi.
Comentou-lhe, sem autocompaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema como um cadáver -,
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas."

Juan Luis Panero

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Sem Transacção

"Sem transacção
nem balança,
tão boa a ternura
de uma criança!

Puro sol matinal
entre a verdura.
Levo a manhã pela mão,
orvalho sobre a secura."

João José Cochofel

sábado, 23 de julho de 2016

Amei as Desaparições

"Amei as desaparições e agora o último rosto saiu de
mim.

Atravessei as cortinas brancas:

já só há luz dentro dos meus olhos."

Antonio Gamoneda

Há uma Erva

"Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi a
minha vida.

Regresso a casa atravessando o Inverno: esquecimento
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
vazios e nos pratos cega a solidão.

Ah a pureza das facas abandonadas."

Antonio Gamoneda

Bato à Porta

"Bato à porta da minha solidão,
E ninguém abre!
Na grande noite que me rodeou,
Quem vinha ao meu encontro, desviou
A direcção fraterna da ternura…
Trevas — é o que ficou
Na concha de que fiz a sepultura."

Miguel Torga

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Dentro de mim Solidão Levo

"Dentro em mim solidão levo,
Torre de cegas janelas.
Quando meus braços estendo
Abro-lhe as portas de entrada,
Abro caminho alfombrado
A quem quiser visitá-la.
Lembrança pintou os quadros
Que ornamentam suas salas,
Onde alegrias passadas
Com penas de hoje contrastam
Quão juntos ambos estávamos
Quem era o corpo? Quem é
A alma? Que morte amarga
Foi nosso adeus derradeiro!
Agora dentro em mim levo
Alta solidão delgada."

Manuel Altoguirre

Teias de Aranha Penduradas da Razão

"Teias de aranha penduradas da razão
Numa paisagem de cinza absorta;
Já passou o furacão do amor,
Já não resta pássaro algum.

Tampouco folha alguma,
Todas vão longe, como gotas de água
De um mar quando seca,
Quando já não há lágrimas suficientes,
Porque alguém, cruel como um dia de sol na primavera,
Com apenas sua presença dividiu em dois um corpo.

Agora cabe recolher os restos de prudência,
Embora sempre algum nos falte;
Recolher a vida vazia
E caminhar esperando que lentamente se encha,
Se é possível, outra vez, como antes,
De sonhos desconhecidos e desejos invisíveis.

Tu não sabes nada disso,
Tu estás lá, cruel como o dia;
O dia, essa luz eu abraça bem apertado este triste muro,
Um muro, não entendes?,
Um muro diante do qual estou só."

Luis Cernuda

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Poemas de Desilusão e de Revolta III

"Porquê
a expiação
de um mal que não cometemos?

Porquê
arrastar sempre a grilheta
de um crime que nunca foi?

Porquê?
andar conformado, submisso,
dando a desculpa a si próprio
da explicação de tudo
numa história, aliás bela,
mas estranha,
de serpentes e maçãs..."

João José Cochofel

sábado, 25 de junho de 2016

Sábado

"Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino:

chegar à margem e ter medo da quietude da água."

Antonio Gamoneda
"Livro do Frio"
(trad José bento)

Prometeu na Fronteira

             I

"Talvez passemos pelo mesmo tormento.
Um deus caído na dor vale tanto
quando a dor se esta supera o pranto
e se levanta contra o firmamento.

Um deus imóvel é um deus sedento
e a mim cobrem-me com o mesmo manto.
Eu tenho sede e o que levanto
é a impotência de levantamento.

Oh que dura, feroz é a fronteira
da beleza e da dor; nem um Deus
pode cruzá-la com seu corpo puro.

Ambos estamos de igual maneira
a ferro e sede da solidão; os dois
acorrentados contra o mesmo muro."

          II

"E este dom de morrer, esta potência
degoladora da dor, de onde
nos vem? Em que deus se esconde
esta forma sinistra de clemência?

Uma única divina descendência
a esta zona de sombra corresponde.
Se falas a um deus, quando responde,
vem a morte por correspondência.

Se não fosse cobarde, se, mais forte,
num raio pudesse pela boca
expulsar este medo da morte,

como este imortal acorrentado
seria puro na dor. Oh, rocha,
meu mundo de sede, mundo olvidado"


Antonio Gamoneda
"Oração Fria"
(Trad João Moita)

O Ganho

"Nada perdeu,
Pois nada possuía,
Quem chegava inválido e despido.
Mas ganhou pouco a pouco, depressa,
o melhor de saudades, preguiça acobardada,
e uma medida rasa de incertezas
onde a ilusão com tédio vai procurar migalhas."

Pere Quart
"Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
(Trad  José Bento)

domingo, 19 de junho de 2016

Terra de Ninguém

"Todos têm para mim o desprezo dos fortes,
todos têm para mim
o desprezo
dos que encontram na vida um caminho
- que muitas vezes não encontraram
mas julgaram encontrar.

Caminho
que pode ser o seu
mas é um caminho...

Eu
continuarei a perder-me nos horizontes largos,
a andar às cegas entre o mal e o bem...

que a minha terra
é Terra de Ninguém."

João José Cochofel

Sonho Perdido

"Como foi que o meu sonho se perdeu
No liso descampado desta vida?
Distraída
Atenção
Que tão ingloriamente empobreceu
Quem não tinha outro vinho e outro pão!

Na fundura dos bolsos não encontro
Nem sequer a lembrança desenhada
Do seu calor!
Perdi o sonho… E resta-me o pudor
Deste triste poema ressequido…
Perdi o sonho… E nunca se encontrou
Nenhum sonho perdido."

Miguel Torga

Perplexidade

"Hesito no caminho.
Ninguém segue este rumo...
É noutra direcção
Que o vento leva o fumo
Das paixões...
Chegar, sei que não chego,
De nenhuma maneira;
Mas queria ao menos ir no lírico sossego
De quem não se enganou na estrada verdadeira.

E não vou.
Cada vez mais sozinho
Na solidão,
Duvido da certeza dos meus passos.
Vejo a sede ancestral da multidão
Voltar costas às fontes que pressinto,
E fico na mortal indecisão
De afirmar ou negar o cego instinto
Que me serve de guia e de bordão."

Miguel Torga

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Panfleto contra a Paisagem

"Apaga-te, lua!
- lâmpada dos lírios e dos cães.

Não finjas de alma
esta realidade violenta
que me dói até às raízes.

Não pintes de mistério
estas bocas de fome
onde só há metafísicas de pão negro.

Não abras asas
na planície das pedras
de fogo apodrecido.

Apaga-te lua!
Peço-te que te apagues!
Para os tímidos poderem amar-se à vontade na sombra sem olhos,
para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas às castelãs de carne invisível,
para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo da noite,
para os trémulos morrerem heróicos em barricadas de imaginação,
para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão verde dos caixotes,
para os cegos dizerem: «Não vemos porque não há luar!»,
para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a arrastar mantos negros,
para os escorraçados saírem dos canos lôbregos
e forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
onde só os pobres deitaram moedas falsas,
para os visionários mergulharem as mãos na noite
em busca de outra lua sem vincos de caveira,
para as mães das caves convencerem os filhos: «Moramos num palácio às escuras»...

Ouviste, lua?
Apaga-te!
- lâmpada dos cães e dos poetas magros."

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Poema 2

"Lancei ao abismo o osso da misericórdia; não é neces-
sário quando a dor faz parte da serenidade, mas a luci-
dez trabalha em mim como um álcool enlouquecido.

Sei que as unhas crescem na morte. Não

chega ninguém ao coração. Despojamo-nos de nós mesmos
ao expulsar a falsidade, esfolamo-nos e

não vem ninguém. Não
há sombras nem agonia. Bem:
não haja mais do que luz. Assim é
a última embriaguez: partes iguais
de vertigem e esquecimento."

Antonio Gamoneda

sábado, 14 de maio de 2016

        XXIX

"Só, mas não morto, quase morto diríamos,
mas ainda ofegante, com as mãos inúteis
e o rosto azul. Vencido, mas ansioso. O mar
pôs palavras velhas nas minhas orações. Onda,
madrepérola, medusa, alcantil… Fui
o afogado mais duro de roer. Debaixo de água,
digno, ia cantando os poemas de Shelley.
E quando as gaivotas queriam devorar-me,
dava-lhes pão limpo de sonhos incompletos.
O mar era um deus lento, não me merecia."

Vicente Valero

Aqui

"Aqui o inferno mata as profissões
Que têm acesso ao ar.
Diz-se que deus se absteve
De criar servidores para os condenados
Ao tédio.

Morre-se no emprego
Com a garganta apertada por uma mão
Sem ossos.

Aqui os anos crescem pouco ou nada.
Os dias e dias secam na raiz.
Não há horas felizes.

O sol sempre se deu bem com gente como esta
Que salpica de chuva os seus pequenos
Afazeres
Para ficar em casa.

Gente com plenos poderes
Para desmanchar a festa que se alonga
Para lá da cabeça.

Diz um: eu sou o sábio de domingo.
Agora não me ocupo de dias úteis, de remendos d’alma,
De fragilidades.
Esperem por mim mas só depois
Da missa.

Diz outro: a ética é grega de nascença
Movemo-nos por números, já sentenciava Pitágoras.
Não cunhamos moeda, não sujamos as mãos
Nos improvisados remos do naufrágio.
O nosso destino é perguntar.

Parece que deus quis que não nascesse a obra.
Nascer que nasça o sol
E é bastante.
Quem pergunta ao sonho pelo homem
De serviço?

Nos campos vicejam novamente as urtigas
São restauros agrícolas,
Exemplos a seguir, ordens vindas de cima,
Ao ouvido,
Na sala dos banquetes.

O mar faz de cão velho e deixa-se ficar
À espera no patamar dos mitos.
Ninguém o suporta
Nem ao seu uivar aos pés
Da história.

Comovidos estamos, com um não sei quê,
Um quanto, um como, uma dor
Que levanta asas
E vai do vale à montanha
Como vão os monges cavaleiros
À televisão.

Aqui a cidade abre-se para lá da noite
E é sempre belo ver a madrugada
A chorar os seus ídolos.

Aqui os que têm coração
Têm desconto."

Armando Silva Carvalho
(Sol a Sol) 

Estou Perdido

"Profeta de meus fins não duvidava
do mundo que pintou minha fantasia
nos enormes desertos invisíveis.

Reconcentrado e penetrante, só,
mudo, predestinado, esclarecido,
meu profundo isolamento e fundo centro,
meu sonho errante e solidão submersa,
dilatavam-se pelo inexistente,
até que vacilei, até que a dúvida
por dentro escureceu minha cegueira.

Um tacto escuro entre o meu ser e o mundo,
entre as duas trevas, definia
uma ignorada juventude ardente.
Encontra-me na noite. Estou perdido."

Manuel Altolaguirre

domingo, 8 de maio de 2016

Poeta

"Lembras-te, Mãe

do menino que perdeste
e que ficou...
do menino que ficou
mas que fugiu...?

Anda agora pela vida...

É o poeta dos olhos molhados
do sorriso triste
dos dedos longos...

Anda agora pela vida...

E um dia, Mãe
ele há-de voltar
novamente,
para lhe aqueceres as mãos frias
e chorar com ele as ilusões perdidas.

Entretanto
deixa-o sofrer mais algum tempo..."

João José Cochofel

Sonho Perdido

"Como foi que o meu sonho se perdeu
No liso descampado desta vida?
Distraída
Atenção
Que tão ingloriamente empobreceu
Quem não tinha outro vinho e outro pão!

Na fundura dos bolsos não encontro
Nem sequer a lembrança desenhada
Do seu calor!
Perdi o sonho… E resta-me o pudor
Deste triste poema ressequido…
Perdi o sonho… E nunca se encontrou
Nenhum sonho perdido."

Miguel Torga

Andorinha

"Andorinha lá fora está dizendo:
— "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa . . ."

Manuel Bandeira

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Quando ainda sou a Vida

"Cerca-me a vida, como naqueles anos
já perdidos, com o mesmo esplendor
de um mundo eterno. A rosa esfaqueada
do mar, as luzes derrubadas
dos hortos, o fragor das pombas
no ar, a vida ao meu redor,
quando ainda sou a vida.
Com o mesmo esplendor, e olhos envelhecidos,
e um amor fatigado.

Qual será a esperança? Viver mais,
e amar, enquanto se esgota o coração.
um mundo fiel embora perecível.
Amar o sonho destruído da vida
e, embora não possa ser, não maldizer
aquele antigo engano do eterno.
E consola-se o peito, porque sabe
que o mundo pode ser uma bela verdade."

Francisco Brines
(Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea)

Separação

"Levo em mim a solidão,
torre de cegas janelas.

Quando meus braços estendo
abro suas portas de entrada
e dou caminho macio
a quem quiser visitá-la.

Pintou a lembrança os quadros
que enfeitam as suas salas.
Minhas venturas de outrora
com a dor de hoje ali contrastam.

Que juntos os dois estávamos!
Quem o corpo?Quem a alma?
Nossa ultima despedida,
que morte foi tão amarga!

Dentro de mim levo agora
a solidão alta e delgada."

Manuel Altolaguirre
"trad José Bento"

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Pensamentos Finais

"Nasceu e não soube. Respondeu e não falou

As almas surpreendidas olham-te
quando não passas. O vento não cumpre nunca.
Teu pensamento a sós cai lentamente.
Como as fenecidas folhas caem e voltam
a cair, se o vento as dispersar.
Enquanto as espera a sóbria terra,
aberta. Calado o coração, mudos os olhos,
teu pensamento desfaz-se vagaroso
no ar. Movido suavemente. Um som de ramos
finais, um esvaído sonho de ouros vivos
se esparge… as folhas vão caindo."

Vicente Aleixandre
"poemas de la consumación"

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Litania da Sombra

"Não perguntem nada: nós estamos dentro
do aro de frio, no frio do muro,
tão longe, tão longe da feira do Tempo!
Não perguntem nada.
Nós estamos mudos.

Puseram açaimes nas ventas do vento,
ergueram açudes nas águas do Mar…
Não perguntem nada: nós estamos dentro,
ou fora de tudo.
Não perguntem nada.

Tumulto na estrada? O bicho na concha.
Miséria na casa? O farol na montra.
Não perguntem nada, não perguntem nada:
há sempre de gládios
a ríspida sombra.

Não perguntem nada: as razões são longas.
Não perguntem nada: as razões são tristes.
Não perguntem nada: nós estamos contra.
E talvez perdidos.
                         E talvez perdidos."

David Mourão Ferreira
"Memoriam Memoriae"

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Agenda

"Folheio a vida
Num calendário velho.
Dias riscados, como contas pagas.
Domingos de repouso,
Segundas de trabalho
Sábados de cansaço,
Sem nenhum sentido.
No abismo do nada,
O nada, apenas.
Quem sofreu nestas páginas vazias,
Tão frias,
Tão serenas?"

Miguel Torga
"diário X"

É tudo tão Pequeno esta Manhã.

"É tudo tão pequeno esta manhã.

As aves acordaram surpreendidas,
a voarem nos meus olhos
curvas fatigadas
de Primavera morta…

As mãos caem-me secas
ao longo do corpo
em folhas recortadas
de árvore de solidão…

As raízes sugam-me nas veias
o sangue da terra
das manhãs de sussurro…

Sim. Hoje só eu existo…

Eu com este remorso de gota de água
que se recusa a cair no mar
─ para se sentir maior
longe da cólera comum da Tempestade."

José Gomes Ferreira
"Poesia II"

Se for Nevar

"Se for nevar, ficaremos
como quem espera a neve
– no intervalo sonolento
aonde somente cresce
estar esse alguém perdendo,
não o ver, o que o sustente.
Recolheu-se já o vento.
E encostou recolher-se
ao sono. Que, desde dentro,
puxou o sono por esse
pensar cada vez mais lento,
do intervalo aonde cresce."

Fernando Echevarría
"Geórgicas"

terça-feira, 12 de abril de 2016

Colhe

"Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia."


Eugénio de Andrade

Viagem

"Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar."

António Gedeão

quarta-feira, 30 de março de 2016

Sensibilidade

"Que sensibilidade me sobe
da passada adolescência?
Que agudeza dos sentidos
me perturba a consciência?

Surge do desencanto
um mundo a que me abandono.
Tranqüilo e caricioso
como um sol de Outono.

A cor, a luz, as formas,
sinto-as de coração novo!
Em tudo desconheço
uma experiência que renovo.

Como quem sai
duma longa doença,
deslumbrado e comovido
pela convalescença."


João José Cochofel

A Solidão

"A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada."


Fernando Echevarría

quarta-feira, 23 de março de 2016

Este homem que esperou

"Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar a direcção
ao seu pobre destino

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra"

António Ramos Rosa

Orfeu Rebelde

"Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam os rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza."

Miguel Torga

segunda-feira, 21 de março de 2016

XXXVII

"Ah! Se eu imitasse a alegria das árvores e do vento
que riem sem motivo

Mas não. Ando triste.

Já não me contento em sentir-me vivo…
(E que outro destino existe?)"

José Gomes Ferreira

Termo

"Pára, imaginação!
Não há mais aventura, nem poesia.
A hora é de finados,
Com versos apagados
Na lareira onde a fogueira ardia.

Pára, é a lei.
Agora é só cansaço desiludido
E memória teimosa que entristece
O nada que acontece
E o muito acontecido.

Pára, porque findou
O tempo intemporal
Do amor e da graça concedida
A quem nele, no seu barro original,
Modela a própria vida."

Miguel Torga

sexta-feira, 18 de março de 2016

Comunhão

"Falo do sacramento do silêncio
Da muda eucaristia
Da vida,
Quando no mundo não havia ainda
Palavras
E ninguém profanava
A terra que pisava.

Falo da neve, sem qualquer imagem
A sujar-lhe a brancura.
E relembro a pureza
Do lobo a passeá-la sem ver,
À procura
da presa
Que há-de comer.

Falo do mar sem ninfas
E sem Camões.
Das estações
Do ano
Conhecidas apenas
Pela fúria do vento,
Pelo cheiro das flores,
Pelo gosto dos frutos
E pelo sono das folhas fatigadas
No alto travesseiro das ramadas.

Falo de tudo que não tinha nome,
E tem nome,
E queixo-me de ti, humana criatura,
Que dizes madrugada
De janela fechada,
E acreditas
Que o som da tua voz enclausurada
Traz o renovo de que necessitas."

Miguel Torga

segunda-feira, 7 de março de 2016

Vai devagar, não corras,

"Vai devagar, não corras,
pois aonde tens que ir é só a ti!

Vai devagar, não corras,
que o menino do teu eu, recém-nascido
eterno,
não poderá seguir-te!"

Juan Ramón Jiménez
"trad José Bento"

Sonho

"Era um menino a sonhar
com um cavalo de cartão.
O menino abriu os olhos
e não viu o cavalinho.
Com um cavalinho branco
ele voltou a sonhar;
pelas crinas o prendia...
Assim não te escaparás!
Mal o conseguiu prender,
logo o menino acordou.
Tinha a sua mão fechada.
O cavalinho voou!
O menino ficou sério,
pensando não ser verdade
um cavalinho sonhado.
Já não voltou a sonhar.
E o menino fez-se moço
e o moço teve um amor,
e dizia à sua amada:
Tu és de verdade ou não?
Quando o moço se fez velho
pensava: Tudo é sonhar,
o cavalinho sonhado
e o cavalo de verdade.
E quando chegou a morte,
o velho ao seu coração
perguntava: Tu és sonho?
Quem saberá se acordou!"

António Machado
"trad José Bento"

quinta-feira, 3 de março de 2016

Canção do que Fabrica Espelhos

"Fabrico espelhos:
Ao horror acrescento mais horror,
Mais beleza à beleza.
Levo pela rua a lua de azougue:
O céu reflecte-se nos espelhos
E os telhados bailam
Como um quadro de Chagall.
Quando o espelho entrar noutra casa
Apagará os rostos conhecidos,
Porque os espelhos não contam o seu passado,
Não denunciam antigos moradores.
Alguns constroem prisões,
Grades para jaulas.
Eu fabrico espelhos:
Ao horror acrescento mais horror,
Mais beleza à beleza."

Juan Manuel Roca

Inscrição para um portão de cemitério

"Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce – uma estrela,
Quando se morre – uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
“Ponham-me a cruz no princípio…
E a luz da estrela no fim!"

Mário Quintana

AREIA: XXIII

...
Paisagem de muros e de cães
a ladrarem pelo céu
- propriedade azul
de todos os desgraçados.
...
Árvores escondidas
que o vento desenha em perfumes
no silêncio do sol.
...
Sebes de silvas e piteiras
ainda com o ódio primitivo
de quando o mundo
era um planeta de florestas e de pássaros,
e o homem um intruso,
um ser ilógico
sem raízes nem asas.
...
Hoje esse homem sou eu,
sem terra para pisar,
sem sombras para dormir,
sem frutos para comer,
sem flores para cheirar,
sem fontes para beber
- perseguido por todos os muros do mundo
numa paisagem de lagartixas.
...
Hoje esse homem sou eu.
...
O céu, ao menos, não tem muros.
E as aves não riscam fronteiras
nem põem vidros partidos nas nuvens.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Pérola Solta

"Sem que eu a esperasse, 
Rolou aquela lágrima 
No frio e na aridez da minha face. 
Rolou devagarinho..., 
Até à minha boca abriu caminho. 
Sede! o que eu tenho é sede! 
Recolhi-a nos lábios e bebi-a. 
Como numa parede 
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou, 
Na boca me cantou, 
Breve como essa lágrima, 
Esta breve elegia."

José Régio

Canção para uma valsa lenta

"Minha vida não foi um romance… 
Nunca tive até hoje um segredo. 
Se me amar, não digas, que morro 
De surpresa… de encanto… de medo… 
Minha vida não foi um romance 
Minha vida passou por passar 
Se não amas, não finjas, que vivo 
Esperando um amor para amar. 
Minha vida não foi um romance… 
Pobre vida… passou sem enredo… 
Glória a ti que me enches de vida 
De surpresa, de encanto, de medo! 
Minha vida não foi um romance… 
Ai de mim… Já se ia acabar!"

Mário Quintana

Testamento

"O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero Rezei:
ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!"

Manuel Bandeira

Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

"Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço!

Mas não.

Lá está o sol do costume
com a exactidão
duma bola de lume
desenhada a compasso...

...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...

e desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.

Ah! Como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?"

José Gomes Ferreira

A Base e o Timbre

"Iluminar-se a análise
por trás de cada ponto da pupila
desembacia a base
de ver. E ver culmina
na ordem luminosa por onde as mãos se fazem
inteligência que desliza
e arde quase
no material que surge análise
da ciência divina.
*
Benzo-me em nome da melancolia,
ciência teológica que funda
sermos a história reflectida
de não haver nenhuma,
senão a de um espelho que ilumina
os pensamentos da sua face pura
e onde sermos pensados nos inclina
a ver história onde só há leitura
do esquecimento e da melancolia,
ciêncas da lógica absoluta."

Fernando Echevarría

Figuras

"A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.

   I
À noite, os animais que tinham ido
beber o brilho que lhe vem da noite,
paravam a cheirar. E a ouvir o ruído
crescer do sítio de onde corria a fonte.
À noite os animais eram antigos.
E, à volta deles, tudo o mais que fosse
assentava na sombra. E estendia um sítio
onde o tempo crescia para longe.

   II

A luz dos animais sobe da negra
solidão que os estrutura.
E os constrange à tristeza
dessa escuridão primordial que os funda.
A luz dos animais sobe. Segrega
o conciso halo de enxúndia
com que a lavração da gleba
percorre os membros da corpulência nua.
E a luz dos animais pára. Os assenta
dentro da exterioridade pura
de os vermos sós. Na certeza
do peso ruminante da estatura."
Fernando Echevarría
"Geórgicas"

O Tempo Vive

"O tempo vive, quando os homens, nele,
se esquecem de si mesmos,
ficando, embora, a contemplar o estreme
reduto de estar sendo.
O tempo vive a refrescar a sede
dos animais e do vento,
quando a estrutura estremece
a dura escuridão que, desde dentro,
irrompe. E fica com o uivo agreste
espantando o seu estrondo de silêncio."

Fernando Echevarría 
"Sobre os Mortos"

Resgate

"Meus pés moídos na calçada,
minhas tardes envenenadas de álcoois nos cafés,
e o vazio por dentro
a encher o tédio das horas sem nome.

Tudo isto
- moeda triste
que nem chega a pagar o sol da tardinha
e a poeira de feno que pontilhou de oiro
teu corpo entre trigais."

João José Cochofel
"Breve"

Vidro Côncavo

"Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Saber a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar

Doi esta corda vibrante
A corda que o barco prende
à fria argola do cais
Se uma onda que a levante
vem logo outra qua a distende.
Não tem descanso jamais."

António Gedeão

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Retrato

"O meu perfil é duro como o perfil do mundo.
Quem adivinha nele a graça da poesia?
Pedra talhada a pico e sofrimento,
É um muro hostil à volta do pomar.
Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto
Faz um poema doce e desejado:
Mas quem passa na rua
Nem sequer sonha que do outro lado
A paisagem da vida continua."

Miguel Torga

Outra Vez

"Outra vez este desapego de tudo.
Outra vez
este olhar indiferente para tudo:
não encontrar na vida uma razão de viver.

Triste
encosto-me na janela
e olho a natureza livre.

Talvez valesse a pena ser árvore...

Talvez valesse a pena ser cão.

Tudo
menos andar amarrado uma vida inteira
aos preconceitos inúteis
duma civilização caduca."

João José Cochofel

Sonho Perdido

"Como foi que o meu sonho se perdeu
No liso descampado desta vida?
Distraída
Atenção
Que tão ingloriamente empobreceu
Quem não tinha outro vinho e outro pão!

Na fundura dos bolsos não encontro
Nem sequer a lembrança desenhada
Do seu calor!
Perdi o sonho… E resta-me o pudor
Deste triste poema ressequido…
Perdi o sonho… E nunca se encontrou
Nenhum sonho perdido."

Miguel Torga

sábado, 16 de janeiro de 2016

Terra de Ninguém

"Todos têm para mim o desprezo dos fortes,
todos têm para mim
o desprezo
dos que encontram na vida um caminho
- que muitas vezes não encontraram
mas julgaram encontrar.

Caminho
que pode ser o seu
mas é um caminho...

Eu
continuarei a perder-me nos horizontes largos,
a andar às cegas entre o mal e o bem...

que a minha terra
é Terra de Ningém."


João José Cochofel

"Poesias Excluídas, II, Instantes"

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Folhinha

"Murchou a flor aberta ao sol do tempo.
Assim tinha de ser, neste renovo
Quotidiano,
Outro ano,
Outra flor,
Outro perfume.
O gume
Do cansaço
Vai ceifando,
E o braço
Doutro sonho
Semeando.

É essa a eternidade:
A permanente rendição da vida.
Outro ano,
Outra flor,
Outro perfume,
E o lume
De não sei que ilusão a arder no cume
De não sei que expressão nunca atingida."

Miguel Torga

A Callar!

"Aprendi a calar,
a sorrir
quando era absolutamente necessário,
a correr, a não sentir,
a amar sem que se note,
a comer sem prazer,
a esquecer logo,
a viver só,
a pensar nos demais
para não pensar em si mesmo
e a rezar para não despertar,
porque, às vezes,
(ainda apesar de tudo)
surge um desejo de viver
e o monstro segue firme
ao nosso lado
mesmo se resta apenas o remédio de esquecer
e recorrer à oração,
ao maratonismo e ao silêncio
para continuar fugindo e temendo,
para não pensar
que outro dia
as coisas podem ser de outra maneira."


Jorge Canese
"Trino soterrado"

Ré Menor

(...)

"O silêncio sublima-se no próprio silêncio, magnificência.
Isto, também é deus. Não é instantâneo. Faz-se, cresce, in-
vade, circula, circunda. Absorve.

Blindar os dias com música. Cada um, um por um."

(...)

Patrícia Baltazar
"ré menor"

Melodia

     V

"Nunca encontrei um pássaro morto na floresta.

Em vão andei toda a manhã
a procurar entre as árvores
um cadáver pequenino
que desse o sangue às flores
e as asas às folhas secas...

Os pássaros quando morrem
caem no céu."

José Gomes Ferreira
"Poesia"

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Poeta

"Lembras-te, Mãe

do menino que perdeste
e que ficou...
do menino que ficou
mas que fugiu...?

Anda agora pela vida...

É o poeta dos olhos molhados
do sorriso triste
dos dedos longos...

Anda agora pela vida...

E um dia, Mãe
ele há-de voltar
novamente,
para lhe aqueceres as mãos frias
e chorar com ele as ilusões perdidas.

Entretanto
deixa-o sofrer mais algum tempo..."

João José Cochofel

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Aos Amigos

"Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão."

Herberto Helder
"Ofício Cantante"

Poesia

    ***

"Houve um tempo em que as minhas únicas paixões
eram a pobreza e a chuva.

Agora sinto a pureza dos limites e a minha paixão
não existiria se eu soubesse o seu nome."

Antonio Gamoneda

sábado, 9 de janeiro de 2016

Guerra Civil

"É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso,
O que sinto,
O que digo
E o que faço,
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço.

Absurda aliança
De criança
E adulto,
O que sou é um insulto
Ao que não sou;
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou.

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
Nem convencido.
E agrido em mim o homem e o menino."

Miguel Torga

Há sempre um erro novo à nossa espera

"Há sempre um erro novo à nossa espera.

Seja ele um cubo ou uma esfera,
há que recebê-lo com alegria.

É um erro novo.

Está à nossa espera."

Jaime Salazar Sampaio

Não Desafies a Alegria

   XVII

"Não desafies
a alegria.

Quando ela chegue
um instante só
não lhe perguntes
porquê?

Estende as mãos ávidas
para o calor
da cinza fria."

João José Cochofel

Poema

"Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é o seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura"

Mário Cesariny
"Pena Capital"

Oração Fria

"Há uma erva cujo nome se desconhece; assim foi a
minha vida.

Regresso a casa atravessando o inverno: esquecimento
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
vazios e nos pratos cega a solidão.

Ah a pureza das facas abandonadas."

António Gamoneda

Areia

       XIV

...
"Acuso-te, realidade,
desta noite longa
a estender-se de estrelas
até o frio do espanto.
...
Acuso-te de seres um sonho alheio
que não cabe no meu canto."

José Gomes Ferreira

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A Carne e o Sonho

"O tempo é mau ladrão: somente rouba ao homem
seus territórios de infeliz mendigo.
Mas se aquelas desditas pudesse recuperá-las,
não voltaria a ser a sombra que foi antes,
mas esse rei lendário que ainda tem que nascer.

O sonho é a matéria de que está feito o deus,
e, como a água ao fogo, aniquila-o a carne."

Francisco Brines
trad José Bento

domingo, 3 de janeiro de 2016

Areia

               XXIII

...
Paisagem de muros e de cães
a ladrarem pelo céu
- propriedade azul
de todos os desgraçados.
...
Árvores escondidas
que o vento desenha em perfumes
no silêncio do sol.
...
Sebes de silvas e piteiras
ainda com o ódio primitivo
de quando o mundo
era um planeta de florestas e de pássaros,
e o homem um intruso,
um ser ilógico
sem raízes nem asas.
...
Hoje esse homem sou eu,
sem terra para pisar,
sem sombras para dormir,
sem frutos para comer,
sem flores para cheirar,
sem fontes para beber
- perseguido por todos os muros do mundo
numa paisagem de lagartixas.
...
Hoje esse homem sou eu.
...
O céu, ao menos, não tem muros.
E as aves não riscam fronteiras
nem põem vidros partidos nas nuvens.
...

José Gomes Ferreira