segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Solidão

"Ó solidão! À noite, quando, estranho,
Vagueio sem destino, pelas ruas,
O mar todo é de pedra... E continuas.
Todo o vento é poeira... E continuas.
A Lua, fria, pesa... E continuas.
Uma hora passa e outra... E continuas.
Nas minhas mãos vazias continuas,
No meu sexo indomável continuas,
Na minha branca insónia continuas,
Paro como quem foge. E continuas.
Chamo por toda a gente. E continuas.
Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.
Invento um verso... E rasgo-o. E continuas.
Eterna, continuas...
Mas sei por fim que sou do teu tamanho!"

Pedro Homem de Mello

David Osborn


A Palavra Impossível

"Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere."

Adolfo Casais Monteiro

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Sinais de Fogo

"Sinais de fogo, os homens se despedem. 
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias. 
E o vento que essas cinzas nos dispersa 
não é de nós, mas é quem reacende 
outros sinais ardendo na distância 
um breve instante, gestos e palavras. 
ansiosas brasas que se apagam logo."

Jorge de Sena

Clarence Sinclair - Greta Garbo


Segredo

"Nem o Tempo tem tempo 
para sondar as trevas 

deste rio correndo 
entre a pele e a pele 

Nem o Tempo tem tempo 
nem as trevas dão tréguas 

Não descubro o segredo 
que o teu corpo segrega" 

David Mourão Ferreira

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Uma Palavra te Procura

"Uma palavra te procura 
ao nível desta existência suave 
dura 
uma palavra não para ostentação mas para seguir na estrada 
no seu ágil correr de fogo 
para te abrir o dia 
para te fazer mais pequeno do que o buraco 
para te dar um breve crepitar 
de um insecto 
a fuga precipitada ou o vagaroso pêlo 
o imperceptível movimento 
da água na vereda 
a existência ínfima 
de qualquer animal 
ou folha 
uma partícula de poeira 
ou sulco 
um estalido 
uma palavra como uma chama um pouco mais clara do que o dia 
só levemente mais clara do que a tua mão 
e escura ou parda como a estrada"

António Ramos Rosa

Gordon Parks - Red Jackson -1948


Vem, Vento, Varre

A José Rodrigues Miguéis 

"Vem vento, varre 
sonhos e mortos. 
Vem vento, varre 
medos e culpas. 
Quer seja dia, 
quer faça treva, 
varre sem pena, 
leva adiante 
paz e sossego, 
leva contigo 
nocturnas preces, 
presságios fúnebres, 
pávidos rostos 
só cobardia. 

Que fique apenas 
erecto e duro 
o tronco estreme 
de raiz funda.
 
Leva a doçura, 
se for preciso: 
ao canto fundo 
basta o que basta. 

Vem vento, varre!"

Adolfo Casais Monteiro

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Visita

"Bateu a morte à minha porta e não entrou.
Também a tanto não a convidei.
Pelo contrário, sacudi-lhe o vulto.
Sei que nunca gostou da minha vida.
Mas, contra tudo e todos, tinha de me cumprir,
Sem cuidar das sanções do desafio.
E por isso teimei no desvario
Dessa infrene quermesse.
Infeliz, se me vejo mergulhado
Na negrura da noite do meu fado.
Feliz, quando amanhece."

Miguel Torga

Sebastiao Salgado


Que Há para Lá do Sonhar?

"Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar?"

Vergílio Ferreira

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Memória Sobre os Teus Olhos

"Magníficos. 
como os jactos que aguardam no aeroporto o iminente sinal da partida, 
seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes, 
o subsolo da imagem pressentida. 
Perfurantes como as brocas dos mineiros, 
pontas de aço-vanádio 
que o cubro alcançam sem perder o gume, 
um fogo o olhar o queima, um mar invade-o, 
um lume feito de água, água de lume. 
Súbito, seus grandes olhos imensos descolam e levantam voa. 
Ei-los que sobem. 
Seu movimento é como se apenas as coisas deles se afastassem, 
é como se move o tempo, sem agravo nem estrago, 
como boiam as folhas na dormência do lago, 
como bate o coração do homem enterrado no chão. 
Na estática subida a que se entregam 
 são o próprio silêncio em que navegam, 
 são a curva do espaço, 
a quarta dimensão. 
Cá em baixo, 
onde as superfícies se avaliam 
multiplicando pi por érre dois, 
um formigueiro de bois 
desenha na planície coloridos talhões. 
Cumprem-se as sementeiras. 
As cores são as bandeiras; 
os regos, os limites das nações. 
Um rabiar de células, 
Cultura de bactérias num capacete de aço, 
ziguezagueiam, obstinadas como libélulas, 
num charco de sargaço. 
Entretanto, 
seus grandes olhos imensos olham, e olhando, 
no desígnio frontal que não hesita nem disfarça, 
com linhas de olhos vão bordando a talagarça. 
Sento-me à secretária, 
preparo-a, limpo-a, esfrego-a 
na aflita busca do mais puro espaço, 
e com o esquadro e a régua, 
o lápis e o compasso, 
construo os olhos d'Ela. 
Deliberada e escrupulosamente 
ergue-se a construção de arquitectura mansa, 
quase cinicamente, 
como quem premedita uma vingança. 
(Aliás 
o engano, a ilusão, 
a mentira, a falsidade, 
o perjúrio, a invenção, 
tudo, em Amor, é verdade.) 
Eis os mais lindos olhos deste mundo. 
O Amor os fez. 
Proas de galeões de velas pandas, 
meninas a correr que chegam às varandas 
olhando o mundo pela primeira vez. 
Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero 
na plácida inocência, 
um miligrama de cianeto, morte sem desespero, 
acicate da humana permanência. 
Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca 
de plátano, uns veios 
de clorofila, 
mancha irisada 
em redor da pupila, 
óleo vertido no asfalto da estrada. 
Encosto o rosto às mãos, e embevecido 
contemplo a construção de linhas, 
e finjo-me esquecido 
como se não soubesse que são minhas. 
Como se não soubesse 
comovo-me e entrego-me no sorriso total, 
Construo o meu real 
conforme me apetece." 

António Gedeão

Izis Bidermanas


Euforia

"Cai neve no cérebro vivo do imaculado - dizem
que este milagres só são possíveis com rosas e
enganos - precisamente no segundo em que a insónia
transmuda os metais diurnos em estrume do coração

Dizem também
que um duende dança na erecção do enforcado - o fulgor
dos sémenes venenosos alastra no brilho dos olhos e
um sussurro de tinta preta aflora os lábios
fere a mão de gelo que se aproxima da boca

O vómito da luz ergue-se
das palavras ditas em surdina

A seguir vem o sono
e o miraculado entra no voo dos cisnes
o dia cansa-se
na brutalidade com que a voz se atira contra as paredes
abrindo fendas
em toda a extensão das veias e dos tendões

Quando desperta com o crepúsculo
o miraculado olha-nos fixamente e sorri
dá-nos uma rosa em forma de estilete - fechamos os olhos
sabendo que este é o maior engano
da eternidade"

Al-Berto

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

HERZOG

"A minha desforra são palavras.
Levanto-me de manhã amarrotado
pelo peso inclemente das mentiras
e vazo no real outro real
das letras que ninguém vislumbrará.
O pássaro que canta é uma palavra,
é uma carta escrita a este, àquele,
que me saiu do lápis da amargura;
tudo se refaria se jamais feita fosse
alguma coisa que a minha mão não desse.
Desforro-me sem gosto. Desforro-me sem gasto,
acorrentado ao que me vem de trás
e ao que virá e que não sei se quero."

Pedro Tamen

Andre Kertesz


Grito Claro

"De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro"

António Ramos Rosa

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Esperança

"Quero que sejas
A última palavra
Da minha boca.
A mortalha de sol
Que me cubra e resuma.
Mas como à despedida só há bruma
No entendimento,
E o próprio alento
Atraiçoa a vontade,
Grito agora o teu nome aos quatro ventos.
Juro-te, enquanto posso, lealdade
Por toda a vida e em todos os momentos."

Miguel Torga

André Kertész


Homem

"Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pinceladas de zarcão
desde mais infinito a menos infinito."

António Gedeão

Testamento do Poeta

"Todo esse vosso esforço é vão, amigos: 
Não sou dos que se aceita... a não ser mortos. 
Demais, já desisti de quaisquer portos; 
Não peço a vossa esmola de mendigos. 

O mesmo vos direi, sonhos antigos 
De amor! olhos nos meus outrora absortos! 
Corpos já hoje inchados, velhos, tortos, 
Que fostes o melhor dos meus pascigos! 

E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje 
Que tudo e todos vejo reduzidos, 
E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge. 

Para reaver, porém, todo o Universo, 
E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!.... 
Basta-me o gesto de contar um verso."

José Régio

David Osborn


Poema do coração

"Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração, 
e também a Bondade, 
e a Sinceridade, 
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração. 
Então poderia dizer-vos: 
"Meus amados irmãos, 
falo-vos do coração", 
ou então: 
"com o coração nas mãos". 

Mas o meu coração é como o dos compêndios. 
Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral) 
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos). 
O sangue ao circular contrai-os e distende-
os segundo a obrigação das leis dos movimentos. 

Por vezes acontece 
ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados, 
e uma lâmina baça e agreste, que endurece 
a luz dos olhos em bisel cortados. 
Parece então que o coração estremece. 
Mas não. 
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático, 
que esse vento que sopra e ateia os incêndios, 
é coisa do simpático. 
Vem tudo nos compêndios.

Então, meninos! 
Vamos à lição! 
Em quantas partes se divide o coração?"

António Gedeão

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Borralho

"Vou aquecendo os sonhos à lareira,
Sem reparar nas cinzas do brasido.
Ou olho-as distraído,
Na baça inconsciência
De que são a verónica da morte.
Sentado na cadeira habitual,
Diligência irreal
Que atravessa, morosa, a noite fria,
De mim próprio alheado,
Dou concreto calor à fantasia
Como se o lume fosse imaginado."

Miguel Torga

Dorothe Lange - Migrant Mother 1936


Pedra Filosofal

"Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."


António Gedeão

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Desgarrada

"Na sina que me foi lida,
Este dia é sempre assim:
Sol na paisagem da vida,
E sombra dentro de mim."

Miguel Torga

Charles Gatewood Williams Burroughs and Dream Machine London


Pirata

"Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo."

Sophia de Mello Breyner

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Ponto de orvalho

"Nem se chega a saber como 
um inusitado sorriso, 
um volver de olhos doentes, 
um caminhar indeciso 
e cego por entre as gentes, 
chamam a si, aglutinam, 
essa dor que anda suspensa 
( e é dor de toda a maneira) 
como o vapor se condensa 
sobre núcleos de poeira. 
É essa angústia latente 
boiando no ar parado 
como um trovão iminente, 
que em muda voz se pressente 
num simples olhar trocado. 
Essa angústia universal, 
esse humano desespero, 
revela-se num sinal, 
numa ferida natural 
que rói com lento exagero. 
Não deita sangue nem pus, 
não se mede nem se pesa, 
não diz, não chora, não reza, 
não se explica nem traduz. 
A gente chega, respira, 
olha, sorri, cumprimenta, 
fala do frio que apoquenta 
ou do suor que transpira, 
e pronto, sem saber como, 
inútil, seco, vazio, 
cai na penumbra do rio, 
emerge, boia, soçobra, 
fácil e desinteressado 
como um papel que se dobra 
por onde já foi dobrado." 

 António Gedeão

Ansel Adams


Nas vastas águas...

"Nas vastas águas que as remadas medem. 
tranquila a noite está adormecida. 
Deslisa o barco, sem que se conheça 
que o espaço ou tempo existe noutra vida, 
em que os barcos naufragam, e nas praias 
há cascos arruinados que apodrecem, 
a desfazer-se ao sol, ao vento, à chuva, 
e cujos nomes se não vêem já. 
Ao que singrando vai, a noite esconde o nome."

Jorge de Sena

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Depoimento

"De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.

A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia.
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder."

Miguel Torga

Não Venhas Sentar-se à Minha Frente

"Não venha sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado,
Quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro.
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales -
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar."

Fernando Pessoa

Izis Bidermanas


Regresso a Sísifo

"Rodou a pedra e outra vez como antes
a empurrarei, a empurrarei ladeira acima
para vê-la rodar de novo.
Começa a batalha que aconteceu mil vezes
contra a pedra e Sísifo e mim mesmo.

Pedra que nunca deterás no alto:
dou-te as graças por rodar ladeira abaixo.

Sem este drama inútil, a vida seria inútil."

José Emilio Pacheco (Trad Antonio Miranda)

Arritmia

"A vida é lenta quando a morte tem pressa.
Faço ao corpo a promessa
De que vai acabar em breve o sofrimento
Que o turtura.
Mas , da sua clausura,
O coração,
Na cega obsessão
Com que nasceu,
Diz que não, diz que não,
A baralhar o tempo em cada pulsação
como um relógio que endoideceu."

Miguel Torga

Jean Dieuzaide


Estão Podres as Palavras

"Estão podres as palavras - de passarem
por sórdidas mentiras de canalhas
que as usam ao revés como o carácter deles.
E podres de sonâmbulos os povos
ante a maldade à solta de que vivem
a paz quotidiana da injustiça.
Usá-las puras - como serão puras,
se caem no silêncio em que os mais puros
não sabem já onde a limpeza acaba
e a corrupção começa? Como serão puras
se logo a infâmia as cobre de seu cuspo?
Estão podres: e com elas apodrece a mundo
e se dissolve em lama a criação do homem
que só persiste em todos livremente
onde as palavras fiquem como torres
erguidas sexo de homens entre o céu e a terra."


Jorge de Sena

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Clarence Sinclair - Greta Garbo


Mulheres

"Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo em que acreditam.
Elas levantam-se para uma injustiça.
Elas não levam "não" como resposta
quando acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos
para suas crianças poderem tê-los.
Elas vão ao médico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prémios.
Elas ficam contentes quando ouvem
sobre um aniversário ou um novo casamento."

Pablo Neruda

O Maior Poema

"Como os outros
como os outros
sem nada mais que os outros
sentindo como os outros
pensando como os outros
e sofrendo e lutando
e morrendo
como os outros"

Mário Dionísio

Juan Carlos Ruiz Duarte


Não Tenho Certezas

"Não, não tenho certezas.
Se era esse encanto que vos atraía,
Deixai-me só nesta melancolia
De baixo, aberto e liso descampado.
Quero viver, quero morrer, e quero
Que ao fim a soma seja um grande zero
Do tamanho da ardósia...e apagado

Mas são desejos da fisiologia...
Vagas aspirações do dia-a-dia
Duma bilha de barro
Que não vale o cigarro
Que se fuma.
Não, não tenho certezas;
Tenho bruma."

Miguel Torga

Rumor

"Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar.

A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.

Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.

Mas não pode voar."

Eugénio de Andrade

David Seymour


Agora, Apodrecer

"Agora, apodrecer.
Nas ruas, no suor das mãos amigas dos amigos, na pele dos espelhos...
desespero sorrido, carne de sonho público, montras enfeitadas de olhos...

...mas apodrecer.

Bolor a fingir de lua, árvores esquecidas do princípio do mundo...
"como estás, estás bem?", o telefone não toca! devorador de astros...

... mas apodrecer.

Sim, apodrecer
de pé e mecânico,
a rolar pelo mundo
nesta bola de vidro,
já sem olhos para aguçar peitos
e o sol a nascer todos os dias
no emprego burocrático de dar razão aos relógios,
cada vez mais necessários para as certidões da morte exata,
Sim, apodrecer ...

"...as mãos, a cólera, o frio, as pálpebras, o cabelo
a morte, as bandeiras, as lágrimas, a república, o sexo...

... mas apodrecer!

Sujar estrelas."

José Gomes Ferreira