quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Memória Sobre os Teus Olhos

"Magníficos. 
como os jactos que aguardam no aeroporto o iminente sinal da partida, 
seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes, 
o subsolo da imagem pressentida. 
Perfurantes como as brocas dos mineiros, 
pontas de aço-vanádio 
que o cubro alcançam sem perder o gume, 
um fogo o olhar o queima, um mar invade-o, 
um lume feito de água, água de lume. 
Súbito, seus grandes olhos imensos descolam e levantam voa. 
Ei-los que sobem. 
Seu movimento é como se apenas as coisas deles se afastassem, 
é como se move o tempo, sem agravo nem estrago, 
como boiam as folhas na dormência do lago, 
como bate o coração do homem enterrado no chão. 
Na estática subida a que se entregam 
 são o próprio silêncio em que navegam, 
 são a curva do espaço, 
a quarta dimensão. 
Cá em baixo, 
onde as superfícies se avaliam 
multiplicando pi por érre dois, 
um formigueiro de bois 
desenha na planície coloridos talhões. 
Cumprem-se as sementeiras. 
As cores são as bandeiras; 
os regos, os limites das nações. 
Um rabiar de células, 
Cultura de bactérias num capacete de aço, 
ziguezagueiam, obstinadas como libélulas, 
num charco de sargaço. 
Entretanto, 
seus grandes olhos imensos olham, e olhando, 
no desígnio frontal que não hesita nem disfarça, 
com linhas de olhos vão bordando a talagarça. 
Sento-me à secretária, 
preparo-a, limpo-a, esfrego-a 
na aflita busca do mais puro espaço, 
e com o esquadro e a régua, 
o lápis e o compasso, 
construo os olhos d'Ela. 
Deliberada e escrupulosamente 
ergue-se a construção de arquitectura mansa, 
quase cinicamente, 
como quem premedita uma vingança. 
(Aliás 
o engano, a ilusão, 
a mentira, a falsidade, 
o perjúrio, a invenção, 
tudo, em Amor, é verdade.) 
Eis os mais lindos olhos deste mundo. 
O Amor os fez. 
Proas de galeões de velas pandas, 
meninas a correr que chegam às varandas 
olhando o mundo pela primeira vez. 
Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero 
na plácida inocência, 
um miligrama de cianeto, morte sem desespero, 
acicate da humana permanência. 
Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca 
de plátano, uns veios 
de clorofila, 
mancha irisada 
em redor da pupila, 
óleo vertido no asfalto da estrada. 
Encosto o rosto às mãos, e embevecido 
contemplo a construção de linhas, 
e finjo-me esquecido 
como se não soubesse que são minhas. 
Como se não soubesse 
comovo-me e entrego-me no sorriso total, 
Construo o meu real 
conforme me apetece." 

António Gedeão

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